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Homeland
(Terra Natal) é o primeiro livro da Dark Elf Trilogy (Trilogia
do Elfo Negro), composta também por Exile (Exílio)
e Sojourn (Estada Passageira). Lançado logo após
a Icewind Dale Trilogy (Trilogia do Vale do Vento Gélido),
a Dark Elf Trilogy conta a origem de Drizzt e sua decisão
de abandonar seu povo e o Subterrâneo, assim como também
narra sua chegada na superfície. Porém, Homeland
é um pouco diferente dos demais por ser o romance que nos
introduzirá ao universo tão pouco convencional dos
drows de uma maneira muito particular: nós descobrimos,
juntamente com Drizzt, todos os horrores que o fazem renegar sua
raça e as ‘leis’ que a cercam.
Qualquer que seja sua opinião sobre os drows, tenha certeza
de que ela jamais será a mesma depois de Homeland.
Por que R. A. Salvatore?
Antes de falar a respeito dessa trilogia maravilhosa, permitam-me
algumas observações como fã... assim como
eu, muitos leitores de todo o mundo devem se perguntar: o que
faz de Drizzt um personagem tão especial? O que torna Salvatore
um escritor tão popular? Para mim, a resposta é
muito simples: humanização. Quando eu abro um romance
de RPG, eu espero encontrar algo muito além de estatísticas,
algumas lutas e feitos espetaculares, eu espero encontrar aquilo
que não está descrito nos livros de cenário
de campanha. Eu quero saber o que o personagem sente, o que pensa,
o que o move a fazer suas escolhas, seus conflitos pessoais, seus
medos e receios, seus defeitos e fraquezas, o que lhe dá
forças... e os livros de Salvatore são cheios de
tudo isso.
Talvez tenha sido isso que me fez considerar Salvatore o melhor
escritor do universo de Forgotten Realms. Ele
consegue fazer com que seus personagens pareçam reais,
nos faz enxergar em seus conflitos coisas que encontramos em nós
mesmos, a ponto de chegar muito perto de nos convencer de que
Drizzt poderia ser real. E a simplicidade com que faz isso o torna
ainda mais fascinante.
Muitos fãs criticam Salvatore por afastar-se demais do
que seria o RPG clássico. Mas devo discordar de todos eles.
Muitas pessoas dizem que Salvatore ‘força a barra’
e transforma seus personagens em heróis dignos de feitos
tão absurdos quanto personagens épicos seriam...
mas querem ouvir uma opinião sincera? Não me importa
se Drizzt ou Wulfgar poderia ou não ter matado um dragão
cujo Nível de Desafio é totalmente fora de cogitação
para alguém de seu nível, ou se Catti-brie foi capaz
de derrotar um grupo de drows a flechadas, sozinha em uma área
de escuridão (ok, confesso que às vezes
arregalo os olhos, mas no RPG tudo é possível, não?)...
o fato é um só: é praticamente impossível
não se apaixonar por Drizzt Do’Urden, não
se comover quando ele é impedido de transitar por Lua Argêntea
e sente-se destruído ao perceber que talvez jamais seja
aceito, não se revoltar quando ele é obrigado a
enfrentar seu próprio pai vítima de um horrível
sacrifício a Lolth, não se chocar ao descobrir a
natureza de sua raça e ao perceber sua incompatibilidade
com eles... e nesse aspecto, devo bater palmas para Salvatore.
Ele conseguiu dar aos romances de Forgotten o mesmo tom cativante
que as Crônicas de Dragonlance (na minha opinião,
uma das obras mais brilhantes desse tipo de literatura). Ao contrário
de autores consagrados como Greenwood, Salvatore escolheu um caminho
diferente de lidar com seu personagem, e foi isso que o tornou
tão admirado. Ele transformou Drizzt em um herói
palpável, alguém com qualidades e defeitos tão
comuns a qualquer um de nós.
A Dark Elf Trilogy, para mim, é o trabalho mais brilhante
e fascinante da literatura de Forgotten Realms.
Diferente de qualquer coisa do gênero ou até mesmo
de qualquer outro trabalho de Salvatore, essa trilogia nos mostra
uma realidade que faz com que cerremos os dentes e baixemos nossas
cabeças: nada do que você jogou, leu ou ouviu falar
dos drows é realmente tão impressionante quanto
a descrição que Salvatore nos dá. Conforme
cada página é virada, somos inevitavelmente transportados
para junto de Drizzt, tomados por um misto de fascínio
e terror envolventes que nos farão enxergar os drows com
outros olhos – e a considerar Salvatore um dos autores de
fantasia mais brilhantes que conhecemos.
Por ser uma obra tão informativa e com tanto para ser explorado,
decidi dividir a resenha de Homeland em duas partes:
uma focando exclusivamente a sociedade drow, e a outra mostrando
como a trama se desenrola e como Drizzt trilhou o caminho oposto
ao dos seus.
A Sociedade Drow
“Posição social: em todo o universo do
drow, não há palavra mais importante. É o
chamado deles, da nossa religião, o puxar incessante das
cordas em nossos corações. A ambição
esmaga o bom senso e a compaixão é jogada fora em
face a ela, tudo em nome de Lolth, a Rainha Aranha.”
É com essas palavras que Salvatore nos introduz ao universo
dos drows e com essas frases ele consegue resumir de maneira bem
simples o que devemos esperar dessa trilogia. Até então
nenhuma obra tinha explorado os drows de maneira tão profunda
e reveladora. Embora Drizzt já tivesse aparecido na trilogia
anterior e o leitor já tivesse muitos motivos para admirar
aquele drow que caminhava na superfície, é em Homeland,
mais especificamente, que entendemos suas escolhas.
Todos os leitores de Forgotten provavelmente já têm
alguma noção, mesmo que mínima, do que esperar
da sociedade drow. Como se sabe, os drows foram banidos da superfície
pelo próprio deus dos elfos, Corellon Larethian, após
fazerem um acordo com Lolth em troca de poder para derrotar seus
primos. E embora eu tivesse alguma idéia do que seriam
os drows quando lia os resumos nos livros de Forgotten a respeito
desse povo, eu confesso ter ficado impressionada ao entender o
que realmente significava uma sociedade matriarcal, liderada por
uma deusa caótica, onde os homens não são
nada além do que brinquedos nas mãos das mulheres.
Uma das principais questões que nos faz questionar o universo
dos drows é com relação à sua índole
natural. Todos os drows são, de fato, inevitavelmente ruins?
Será que é o meio no qual vivem que os torna insensíveis
e cruéis? Ou será que Drizzt é uma incrível
exceção, quase um milagre dentro de uma sociedade
tão caótica? Essa questão sem dúvidas
gera muita polêmica, se considerarmos um número tão
pequeno de exceções. Porém, após o
silêncio de Lolth, sabe-se que muitos drows insatisfeitos
com sua sociedade abandonaram o Subterrâneo e sua vida submissa
para tentar uma vida melhor na superfície, mesmo sob todos
os problemas de aceitação e todas as dificuldades
que encontrarão. E acredito que o simples fato deles se
decidirem por ‘uma vida melhor’, talvez seja um indício
de que nem todos os elfos negros estão fadados ao caos
e à maldade. Zaknafein, pai de Drizzt, também se
questionava a respeito, muitas décadas antes de seu próprio
filho:
“Serão todos eles assim?”, ele perguntou
dentro de sua sala quase vazia. “Todas as crianças
drow possuem tal inocência, com sorrisos simples e intocados
que não podem resistir à feiúra de nosso
mundo?”
Desde pequenos, os drows aprendem uma versão tão
distorcida da verdade que chega a nos revoltar. E o mais absurdo
é em como acreditam nela, mesmo tendo evidências
para pensar o oposto:
“Uma vez nosso povo andou na superfície (...)
em épocas distantes, mais distantes do que as linhagens
das grandes casas (...) Nós achamos que os faeries eram
nossos amigos, nós os chamávamos de parentes! Mas
não podíamos saber, na nossa inocência, que
eles eram a personificação da falsidade e do mal.
Não poderíamos saber que eles se voltariam contra
nós de repente e nos afastariam deles, massacrando nossas
crianças e os anciões da nossa raça! (...)
Sem piedade, os faeries nos perseguiram pela superfície.
Sempre pedimos por paz e sempre fomos respondidos com espadas
e flechas mortais! (...) Então encontramos a deusa! (...)
Foi ela quem tomou nossa raça órfã para si
e nos ajudou a lutar contra nossos inimigos (...)”
“Do primeiro dia que eram capazes de falar, as crianças
drow eram ensinadas que o que quer que estivesse errado nas suas
vidas era culpa dos elfos da superfície.”
Se você também deixou escapar um riso de incredulidade
ao ler essa passagem você certamente não foi o único.
Sim, muitos drows, a maioria na verdade, pensam exatamente assim:
como injustiçados. São essas idéias que os
Mestres e Mestras das escolas de magos, de guerreiros ou de clérigas
espalham e afirmam, e são essas as idéias que se
tornam a crença de muitos drows. Movidos por elas, os drows
serão levados a odiar todas as raças da superfície,
em especial os elfos. E acreditem, são muito poucos os
drows que realmente sabem a verdade do que aconteceu, e mesmo
eles não são capazes de perceber o absurdo dessas
idéias. Drizzt e seu pai, Zaknafein, provavelmente são
praticamente as únicas exceções desse pensamento,
fato esse questionado por Drizzt durante todo o romance. Perguntas
como “Por que os drows aceitam essa vida, mesmo sabendo
que tudo o que vivem é errado?”, “Será
que eles não se sentem vazios, infelizes?”, “Será
que nenhum deles deseja mais que poder e status?” são
feitas por Drizzt, e por nós, durante toda a história.
Perguntas para as quais não há realmente uma resposta.
Outro aspecto interessante é o modo como as relações
sociais se dão entre eles. Lolth sem dúvidas não
é uma deusa como outra qualquer... e às vezes me
levo a acreditar que ela pode não ser muito certa das suas
idéias. Isso porque Lolth consegue separar e fazer intrigas
entre os próprios drows. A deusa favorece determinadas
famílias e desfavorece outras, fazendo com que briguem
entre si e eventualmente se destruam. Eu me pergunto: o que alguém
ganha fazendo seu próprio povo brigar entre si? E a única
coisa que me vem a cabeça é que Lolth definitivamente
é louca.
O favor de Lolth também é um fator decisivo para
que a vida de um drow e de uma casa prospere. Quando uma família
está sob o favor da deusa, ela é capaz de qualquer
coisa, assim como essa mesma família seria fatalmente destruída
se a deusa não os favorecesse. E sair do favor da deusa
é bastante simples, basta que uma das ‘regras’
da sociedade drow seja quebrada.
“Era conhecido por todos que a Matrona Ginafae da Casa
DeVir havia caído em desfavor com Lolth, a Rainha Aranha
(...) Tal coisa jamais era discutida abertamente entre os drows,
mas todos que sabiam esperavam que uma família mais baixa
na hierarquia logo investisse contra a enfraquecida casa DeVir.”
Embora haja variação de lugar para lugar, na sociedade
drow, os nobres são basicamente os verdadeiros governantes.
As famílias drow são encabeçadas pelas matronas,
apoiadas por seus descendentes diretos e protegidas por soldados,
também considerados membros da família. Essas famílias
são ordenadas por poder, sendo que apenas as oito mais
importantes podem fazer parte do conselho que dita as ‘regras’
do lugar. E quando falo em ‘leis’ e ‘regras’
entre aspas, é porque as linhas finas que as tornam leis
são tão maleáveis quanto uma folha de papel.
Para que uma família que esteja em nona posição
passe para a oitava, só existe uma maneira: eliminar uma
das famílias que está à sua frente. E embora
matar um outro drow seja um crime, essa ‘lei’ pode
ser facilmente modificada. Isso porque quando uma família
drow elimina a outra, caso não seja deixado nenhum sobrevivente,
a família eliminada será tratada como se jamais
tivesse existido e a família que a eliminou subirá
um nível na escala social. Caso algum sobrevivente seja
deixado para trás, ele terá o direito de se vingar,
como uma espécie de castigo à família que
falhou na eliminação completa de seus inimigos.
“Você ouviu falar do destino da casa DeVir?”,
a Matrona Baenre perguntou diretamente (...)
“De que casa?”, Malice questionou propositalmente.
Naquele momento, não havia algo como Casa DeVir em Mezoberranzan.
Pela tradição drow, a casa não mais existia,
ela nunca havia existido.
As relações familiares são praticamente inexistentes.
E quando falo praticamente é porque há um ou outro
gesto que possa ser considerado ‘afetuoso’, como as
exceções do tratamento um pouco ‘menos violento’
de Vierna com Drizzt ou a relação de ‘amizade’
que Drizzt tinha com seu pai, Zaknafein. Não existe mãe
ou pai, irmão ou irmã. Dinin (irmão mais
velho de Drizzt) logo no começo do livro assassina Nalfein
(o irmão mais velho dos três) para tomar seu lugar
como ‘Primeiro Filho da Casa Do’Urden’. E dessa
forma, ele salva Drizzt da morte. Isso porque todo terceiro filho
de uma família drow deve ser dado em sacrifício
para a deusa... e isso já é prova suficiente de
que as relações entre familiares são quase
nulas. Para eles, é algo completamente normal uma filha
matar sua mãe ou um irmão matar o outro. Se isso
for necessário para que alguém alcance mais poder
ou se coloque em favor com Lolth, então será feito.
Os jovens drows de famílias nobre possuem três opções
em suas vidas, após completarem determinada idade: Melee-Magthere,
a academia para treinar jovens guerreiros durante 10 anos; a Sorcere,
para o treinamento de magos e finalmente a Arach-Tinilith, exclusiva
às mulheres para que se tornem clérigas de Lolth.
Em cada uma dessas escolas, todos desejam destacar-se, e a disputa
por poder é ainda maior. Muitos dos estudantes que entram
nessas escolas podem jamais sair delas...
A posição dos homens e mulheres na sociedade drow
é um assunto à parte. Embora nós vivamos
em uma sociedade machista, onde as mulheres são tratadas
com certa inferioridade (no que diz respeito à posição
social, divisão de tarefas entre outras coisas), na sociedade
drow a ponte que separa um homem e uma mulher é muito maior.
Os homens são meros objetos para satisfazer as vontades
de uma mulher, podendo ser eliminados ou descartados conforme
a vontade delas. Eles são literalmente tratados como animais,
nem ao menos podendo olhar uma mulher nos olhos se não
for designado. Caso façam qualquer gesto considerado rude
ou absurdo, eles são brutalmente castigados com o chicote,
a arma favorecida de Lolth, ou com alguma punição
ainda pior, (como, por exemplo, tornar-se um drider).
Nas relações amorosas, os homens são trocados
com a simplicidade de uma roupa. Não existe casamento no
mundo drow, apenas uniões temporárias em busca de
um bem comum. E se um drow despertar o interesse de mais de uma
mulher, ele terá um destino fatal: por mais interessante
que qualquer homem seja, ele não vale o esforço
de uma disputa, e acaba morto.
“(...)Dê boas vindas, então, ao seu irmão,
o mais novo membro da Casa Do’Urden.”
“É só um homem”, Briza comentou em óbvia
aversão (...)
“Da próxima vez faremos melhor.”
“Olhe para mim”, Matrona Malice comandou.
Drizzt sentiu-se perdido. Sua tendência natural sempre fora
olhar diretamente para uma pessoa com a qual falava, mas Briza
não havia gastado seu tempo arrancando esse instinto dele.
O lugar de um pagem era a servidão, e os únicos
olhos dignos de um pagem encontrar eram os das criaturas que corriam
no chão, exceto os olhos de uma aranha, claro (...)
“Olhe para mim!”, sua mãe gritou em um ódio
repentino.
Apavorado, Drizzt voltou seu olhar para o rosto dela, que estava
com um brilho vermelho agora. No canto de sua visão ele
viu a onda de calor de sua mão que balançava, apesar
dele não ser tolo o suficiente para desviar do golpe. Ele
foi parar no chão, o lado de seu rosto machucado.”
Por todo o livro temos inúmeros exemplos de como as mulheres
se impõem de maneira agressiva e controladora, muito além
de qualquer homem de nossa sociedade, mesmo os mais machistas.
É estranho pensarmos que as mulheres no poder possam ser
tão mais cruéis do que os homens, considerando a
tendência natural das mulheres em serem mais receptivas
e afetuosas, porém se lembrarmos dos meios caóticos
de Lolth, talvez isso faça mais sentido. E embora eu acredite
que muitos desses homens aceitem de bom grado esse tratamento,
receio que a grande maioria simplesmente não têm
qualquer escolha. Se considerarmos a retirada de muitos deles
do Subterrâneo após o silêncio de Lolth ou
então cidades como Sshamath, uma das poucas (senão
a única) controlada por homens, percebemos que a obediência
dos homens é uma mera questão de falta de oportunidade.
E então eu me questiono: será que se a sociedade
drow fosse dominada pelos homens, como a maior parte das sociedades,
ela seria diferente? Essa é uma questão a se considerar...
O universo drow é rico o suficiente para que muitas outras
páginas sejam escritas, mas procurei focar nos principais
aspectos de sua sociedade para que vocês possam acompanhar
a segunda parte da resenha sobre Homeland tendo em mente
todas essas noções.
Na próxima parte, veremos como a trama de Homeland se desenrola
e como Drizzt trilha o caminha oposto da sua sociedade.
Até lá!
