O Mito Influencia
1. As Raízes de Holmes.
Antes
de citar as influências da obra policial de Doyle, faz-se
mister perscrutar nas origens do gênero as origens de Sherlock
Holmes. Normalmente diz-se de Edgar Poe a paternidade do gênero
policial. "Normalmente" porque atribui-se a Poe - de
modo bastante tendencioso - a criação de pelo menos
cinco literaturas: a de horror; a psicológica; a de fantasia;
a de ficção científica; a policial. Não
cabe a este pequeno estudo validar ou não o mérito
destas afirmações, mas voltar os olhos para os contos
policiais de Edgar Poe, sobretudo, Os Crimes da Rua Morgue, novela
de 1841, e suas continuações.
Edgar
Poe escreveu a maioria das suas obras de uma maneira muito particular:
em primeira pessoa, sem descrever o personagem narrador, fazendo
o leitor acreditar haver sido o próprio autor a experimentar
aquelas experiências grotescas descritas no seus trabalhos.
Uma antiga quadrinização da obra de Poe mostrava
o autor presente em seus contos, acompanhando as personagens principais,
estudando-as, guardando cada pormenor com olhos ao mesmo tempo
quebrados e agudos, para depois transformar os fatos em narrações.
E assim é em Os Crimes da Rua Morgue. Um autor anônimo
- o próprio Edgar?- que serve de cronista das aventuras
investigativas de um amigo excêntrico -de nome Dupin - com
quem divide aposentos no terceiro andar de uma casa. Qualquer
semelhança com Sherlock não é mera coincidência.
E a esta se seguirão muitas outras.
Não
sou o primeiro autor a destacar as semelhanças entre Dupin
e Holmes, embora me proponha, e não sei o quanto isto seja
inédito, a confrontar as duas obras.
Como
notado acima, Dupin e o seu cronista, assim como Sherlock e Watson,
viviam juntos. Guarde-se esta informação e sigamos
adiante. Nas primeiras páginas de Os Crimes da Rua Morgue
dá-se um fato interessante : para explicitar sua capacidade
analítica, Dupin responde com palavras aos pensamentos
do seu amigo. Disse, enquanto caminhavam em silêncio: "Na
verdade, esse rapaz é muito pequeno e estaria melhor no
Théâtre des Variétés"(1)
. Como se pudesse ler-lhe a mente, causando espanto no
seu companheiro. Depois explicou que tudo não passara de
uma eficaz analise das cadeias de pensamentos e refez o curso
das meditações do amigo, demonstrando o quão
reveladores são o estudo de pequenos eventos e reações
faciais na ação de desvendar os solilóquios
cerebrais. Semelhante fato ocorreu na saga sherlockiana. Num dia
sufocante (no conto A Caixa de Papelão), Watson jazia recostado
a sua poltrona, divagando, quando Holmes interrompeu o rumo dos
seus pensamentos. Disse: "Você tem razão, Watson.
É de fato absurda essa maneira de resolver contendas"(2)
. O Dr. Watson ficou perplexo, seu amigo acabara de desvendar-lhe
as idéias. Qual Dupin, Sherlock refez o curso dos pensamentos
do amigo, explicando sobre as cadeias de pensamentos e expressões,
e como finalmente descobriu exatamento no que cogitava. A presença
desta habilidade em ambos os detetives é muito importante;
a maneira como as narrativas se encontram, não apenas no
que diz respeito ao tema -desvendar pensamentos analiticamente-
mas ao ritmo estabelecido pelos autores e a organização
das explicações que são praticamente os mesmos(3).
Após
a deflagração do crime da rua Morgue os jornais
deram grande importância para o caso, seja pela brutalidade,
seja pela dificuldade de encontrar uma solução satisfatória
para o ocorrido. Dupin interessou-se pelo caso, visitou a cena
do crime, o desvendou, mas não disse nada no primeiro momento,
nem a polícia, nem ao seu amigo. Era um excêntrico,
anelava um fim dramático; Holmes em geral apelava por um
final desta natureza, o forçava até. Assim, Dupin
colocou um anuncio no jornal com o escopo de atrair o culpado.
Ora, este artifício foi usado por Sherlock mais de uma
vez. E para não faltar com os exemplos, citemos o conto
Black Peter, e a novela Um Estudo em Vermelho. Nesta, impressiona
a semelhança da narrativa, da situação e
do motivo do anuncio. Outro fato de mérito é que
quando o suspeito responde ao anuncio de Dupin, vindo até
sua casa, o leitor é colocado diante de uma arquitetura
da Baker Street 221-B: uma escada que leva até os aposentos
habitados pela dupla. E a alusão de Dupin à pistolas,
enquanto o homem sobe, é a mesma que Sherlock Holmes fazia
a Watson sempre que respondiam aos seus anúncios.
A
segunda aparição de Dupin é em O Mistério
de Marie Rogêt. Aqui as semelhanças com Holmes são
muito poucas. Esta novela, com boa vontade, não pode ser
considerada como tal, mas como um artigo. Poe, através
da ficção tenta lançar luz, ou ao menos fazer
conhecer sua opinião, sobre um crime real. Isto separa
o detetive francês do de Baker Street. Doyle nunca se permitiu
escrever estórias policiais genuínas. O leitor pouco
atento passará sem notar que o crime real, aquele cruel,
está na maioria dos casos ausente nas investigações
da dupla Sherlock-Watson; e quando está presente é
apresentado de modo fantasioso. Seus casos são fintas.
Nas palavras de Conan Doyle: "Ouve-se (o leitor ouve) falar
muito do crime e do criminoso, mas o leitor é completamente
enganado"(4).
Não raro Holmes perseguiu um suposto serial killer para
no final descobrir que este não passava de um homem honrado
que fora forçado a fazer justiça com as próprias
mãos.
Tornando
a nos ocupar da segunda novela de Dupin, há a acrescentar
que a única semelhança com Holmes existente ali
é o método. Poe usa o método de analise que
estamos habituados a referir como sherlockiano, mas que para o
bem da verdade originou-se com Dupin. Doyle, que nunca negou a
influência de Edgar Poe, em muitas ocasiões fez uma
meia defesa de si mesmo quanto a este assunto; falara que Dupin
não era um cientista como Holmes. E não mentira,
nas novelas do detetive francês suas habilidades são
colocadas na esfera do dom, da personalidade e da intuição.
Em Holmes nada é intuição ou coincidência,
mas suor e lógica científica.
No
conto A Carta Roubada, Dupin e seu amigo fumam cachimbo quando
o delegado de policia sobe as escadas e vem encontrá-los
em seus aposentos com um pedido de ajuda. Este estudo não
será grande o suficiente para apontar todas as vezes em
que a dupla criada por Doyle fora visitada, na mesmíssima
situação temática e disposição
cênica, pelo inspetor Lestrade e outros agentes da Scotland
Yard. Esta, das tramas de Dupin, é a mais semelhante as
de Holmes. O tema do desaparecimento ou roubo de um documento
que interessa a personagens do mundo político se repete
com Sherlock no conto intitulado A Segunda Mancha. As similitudes
entre os dois roteiros é tanta que é impossível
descartar A Carta Roubada como motivo de inspiração
de Conan Doyle. Mais uma vez, a repetição do tema
é o de menos, sendo a igualdade da cadencia dos acontecimentos
e das escolhas dos escritores o importante. A Carta Roubada interessa
por conter situações, falas, exclamações,
que serão marcas indeléveis das estórias
de Sherlock Holmes.
Mas
então, Holmes não é uma criação
original, mas uma cópia de Dupin? A resposta é não.
Além de Poe, dois outros fatores contribuíram num
momento inicial para o desenvolvimento de Sherlock. Antes de explorarmos
este dois outros fatores, vale um parêntese sobre o que
faz o detetive de Baker Street original. As tramas de Poe não
contem aventura nem fantasia (embora Edgar Poe houvesse escrito
fantasia). Poe é conhecido como um escritor de estórias
de terror; ao escrever, utiliza um elenco vocabular que conduz
o leitor à angústia. Foi um autor extremamente técnico,
preocupado com o resultado que o ritmo das palavras provocaria
no leitor. Não nos forneceu detalhes sobre seu detetive,
sobre o mundo em que habita. Esforça-se, ocultando nomes
e datas, por fazerem crer reais os casos do seu detetive. As estórias
de Dupin são um grande discurso em que se cruzam filosofias,
reflexões sobre a vida, sobre a justiça. Não
há traço da força narrativa de Conan Doyle;
da sua capacidade de prender o leitor com poucas palavras. Holmes
é um personagem em todas as acepções do termo:
apesar de magro é dotado de grande vigor físico,
mais de uma vez combatendo contra os criminosos com os próprios
punhos; persegue seus suspeitos pelas ruas sujas de Londres; é
capaz de disfarçar-se rapidamente, de mudar a voz, de mudar
a postura, é um excelente ator; Sherlock tem um arquinimigo,
despenca com ele enquanto lutam do alto de uma cachoeira; morre;
retorna; torna-se real e palpável apesar das suas estórias
serem paradoxais com o mundo real. Em suma, os casos de Holmes
são "aventuras", os de Dupin "tratados".
Quando Watson, amigo de pouco tempo, comparou o companheiro com
Dupin, esta foi a resposta; disse-lhe Sherlock erguendo-se e acendendo
o cachimbo: "Sem dúvida você acha que está
me elogiando, comparando-me a Dupin. Pois na minha opinião,
Dupin era um sujeito bem inferior. Aquele seu estratagema de intervir
nos pensamentos de seu amigo, depois de quinze minutos de silêncio,
é realmente muito pretensioso e superficial. Tinha certo
gênio analítico, sem dúvida; mas não
era de jeito nenhum o fenômeno que Poe parecia imaginar"(5).
As
outras duas influências de Doyle foram o seu professor "Joe"
Bell e o detetive Lecoq de Gaboriau. De Bell, tomou a aparência,
as maneiras e a capacidade de não deixar inobservados pequenos
detalhes. Os que conhecem pouco a biografia de Conan, supõe
erroneamente ter sido o professor a sua única fonte de
inspiração. De Gaboriau não tomou nada; pode-se
dizer que aprendeu como estruturar tramas policiais bem amarradas.
Watson, em sua inocência (ou talvez no papel de advogado
do diabo) chegou a questionar a Holmes o que ele pensava de Lecoq.
Assim respondeu-lhe o amigo: "Lecoq era um grande trapalhão.
Só uma coisa o recomendava: sua energia. O livro me deixou
positivamente doente. O problema era como identificar um prisioneiro
desconhecido. Eu o teria feito em vinte e quatro horas. Lecoq
precisou de mais ou menos seis meses". Doyle termina esta
fala de Sherlock de modo claramente provocativo: "Poderia
ser um manual para ensinar aos detetives o que não devem
fazer"(5).
Estas alusões as literaturas policiais -as de Poe e Gaboriau-
são positivamente alfinetadas, pois como se sabe, Holmes
não lia e desconhecia quaisquer literaturas à parte
as sensacionalistas.
Passados alguns
anos, Sherlock Holmes ganhou aspectos do próprio Doyle.
Sabemos que o escritor em mais de uma oportunidade -para seu horror
- e por mais de um motivo fora confundido com sua criação.
Escreveu mesmo este verso: "A obra e o seu autor são
duas coisas diferentes". Sabemos ainda que seguramente usou
os métodos de Holmes para ajudar a polícia nas vezes
em que fora requisitado. Há também a transformação
da personagem por parte do imaginário popular, contudo
este assunto já fora discutido na parte três deste
estudo.
2. Os Frutos
Os
meios de comunicação de massa encontram-se tão
saturados de criadores e criações que muitas vezes
é difícil saber quem imita quem, o que é
inspirado no que, ou pior, tornar-se nebuloso o esforço
de descobrir se se trata de plagio ou de "homenagem".
Seria leviano dizer que Sherlock Holmes está presente nos
romances policiais, igualmente, dizer que não está.
É mais interessante destacar o quanto a personagem de Doyle
mudou a maneira do escritor de tramas polícias de observar
o crime. Antes de Holmes, os investigadores da ficção
chegavam aos culpados ou a solução do caso não
raro por dois motivos: 1)o criminoso cometia um erro; 2)uma coincidência
ou puro acaso os conduzia a verdade ou a fazia estalar em suas
mentes. Não havia uma ciência da investigação,
ou pelo menos um método científico. O detetive era
apenas um sujeito como qualquer outro, que chegava a solução
dos seus casos através de energia e persistência
e não da lógica. Neste sentido a sombra de Sherlock
cai sobre as estórias policiais. Poderia refutar, o mais
erudito, e dizer: Não a de Holmes, a sombra de Dupin. Mas
quem conhece Dupin? A personagem de Poe nunca foi o fenômeno
que é Sherlock Holmes.(6)
As
tramas de Holmes, ou antes as melhores, estão mais concentradas
na maneira dramática como ele resolve os seus casos do
que no mundo do crime. Como Doyle possuía pretensões
literárias, nunca se permitiu escrever contos policiais
genuínos. A parte pouquíssimas exceções,
os casos são inocentes e investigam um crime que muitas
vezes não ocorreu. Conan se esforçou o mais que
pode para afastar a torpeza dos delitos reais dos seus enredos.
Mas então, onde está a influencia de Holmes?
Batman
e Holmes
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Arte de Alan Davis e Paul Neary
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Esta
aventura foi publicada na revista Dective Comics
572 (1986) e, no Brasil, em Batman (2ª série,
1988). Na trama, Batman, Robin, Homem Elástico
e o detetive Bradley impedem uma atentado à
Rainha da Inglaterra e recebem uma ajudinha de
Sherlock Holmes.
Ele alega ainda estar vivo
graças a uma alimentação
regrada e à atmosfera rarefeita do Tibet.
O crédito da história é de
Mike W. Barr. |
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O
Mito é objeto de referimento, não envelhece e se
renova. Além das muitas estórias escritas sobre
Sherlock por outros autores (no Brasil a mais importante e famosa
é O Xangô de Baker Street de Jô Soares; romance
que também se encaixa nas sátiras sherlockianas),
existem as imitações sadias do método sherlockiano
espalhadas por centenas de produções artísticas,
seja cinema, TV, quadrinhos. Neste último, a mais celebre
é o personagem Batman (ver box). Desenhos animados de investigação
invariavelmente nos mostram um personagem segurando uma lente
de aumento numa clássica postura à Holmes buscando
pistas. Mas coisa impressionante mesmo fez Asimov, que na sua
série dos Robôs criou uma dupla de detetives na qual
trocava os papeis; o detetive ,Elija Baley, a quem não
faltava o cachimbo, era só emoção (como Watson),
enquanto seu companheiro, o robô Daniel, era somente lógica,
qual Holmes.
Há
muito da tensão da saga sherlockiana nos romances da série
Harry Potter; para quem não conseguir estabelecer uma relação,
sugere-se assistir ao filme O Enigma da Pirâmide ou observar
atentamente as prateleiras das livrarias. Recentemente, com capas
que mostram um Holmes retratado à moda dos quadrinhos americanos,
pode-se encontrar a reedição de toda a saga, com
tratamento para atrair o publico juvenil (nas livrarias em que
pude pesquisar, esta coleção está sistemada
na mesma ou nas prateleiras vizinhas às do mago). É
claro que "Potter" é um assunto e "Sherlock"
outro, mas a inspiração buscada na obra de Doyle
sobra na série de Rowling. Em Harry Potter a investigação
é parte importante do enredo e está presente nos
cinco livros. Para exemplificar, note-se ser o artifício
de Rowling aquele de Doyle, um personagem principal astuto acompanhado
por outro, que se é inteligente, não dispõe
das mesmas habilidades; assim, enquanto avançam nas descobertas,
conversam entre si, servindo de refletor; desta maneira informando
o leitor sobre suas evoluções, etc. Outra relação
com a obra de Doyle (esta fora do âmbito meramente literário)
é o sucesso de Potter, só comparado na história
da literatura ao de Holmes nos fins do século XIX. Há
quem dirá que Potter não pode ser chamado "literatura".
A estes o autor deste estudo pergunta: O que é literatura?
Sempre
que um detetive da ficção acende um cachimbo, vemos
Holmes, mesmo que ele não esteja lá. Georges Simenon
criou o seu Maigret (que fuma mais que Holmes) e apesar de haver
menos paralelos entre Maigret e Sherlock do que entre este e Dupin,
invariavelmente se atribui uma inspiração na obra
de Doyle. Pode-se, certamente, relacionar o detetive de Baker
Street com uma infinidade de criações da ficção
do século vinte, dentro e fora da esfera do romance policial;
fora mesmo do detetive em si, mas relacionando o estilo em que
foram escritas as suas aventuras. Spock, de Star Trek, só
para citar uma criação vigésimo século,
tem diversos atributos sherlockianos: o controle das emoções;
a vida dedicada a lógica; a maneira de agir qual uma máquina;
seu quase completo desinteresse pelas mulheres. Seria monótono
e desinteressante apontar trechos da saga que confirmam estas
observações e outras, desta e demais personagens.
Interessante
seria, para o leitor que ainda não conhece Holmes, procurar
qualquer um dos seus livros e iniciar-se na saga; e para o que
já conhece, pegar sua estória predileta e reencontrar
a dupla dinâmica que habitava na Baker Street.
(1).-Poe,
Edgar. Histórias Extraordinárias; pág.117;
1981.
(2) -Doyle,
Conan. As Aventuras de Sherlock Holmes 5; pág.8
(3) -N. do
E.:É interessante notar que Sherlock cita o conto de Poe,
e critica Watson por não haver acreditado que ele, Holmes,
também era capaz de acompanhar através do raciocínio
lógico os pensamentos dos outros. Mas o próprio
Holmes, numa estória anterior, havia chamado Dupin de exibicionista
e superficial por usar esta capacidade analítica.
(4) - Doyle,
Conan. Aventuras Inéditas de Sherlock Holmes;pág.177;
1987.
(5) - Doyle,
Conan. Um Estudo em Vermelho; pág.24; 1984.
(6)- N. do
E.:Este estudo refere-se aos romances policiais e não à
ciência de investigação legal que tem raízes
muito anteriores.
