Holmes, O Mito.
Sherlock
Holmes é um personagem original, uma das poucas criações
da ficção policial que sobreviveu na memória
dos leitores, e sem sombra de dúvidas, a mais importante
e famosa. Fruto de uma Londres obscura e marginal do final do
século 19, resistiu as guerras e revoluções
do século 20, e demonstrando a sua força narrativa
segue entretendo e influenciando no neo-nato século 21.
Ocorre que Holmes e o dr. Watson pertencem aquela classe de personagens,
como Quixote, Quasímodo, Drácula, etc., que foram
capazes de transcender os limites do papel pintado com tinta para
misturar-se ao imaginario popular, e serem recriados por este
imaginário, tornando-se plenos de significados, ora substantivos,
ora adjetivos, ora subjetivos.

Conan Doyle: criador de Holmes
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Para
compreender melhor este conceito, iniciemos por uma questão
prosaica. A estética. Como se parece Holmes? O leitor rapidamente
já fez uma construção mental: face fina,
quase delicada; limpo e polido à moda inglesa; sobretudo
e boné xadrez. Mas será que Holmes era assim? Escutemos
as palavras do seu criador, Conan Doyle: "Minha opinião
sobre Sherlock [...] era bem diferente daquela que o sr. Paget
(ilustrador) veiculou [...] ele (Holmes) tem um nariz mais adunco,
um rosto aquilino, aproximando-se mais da feição
de um pele vermelha"(1).
O caso é que Doyle nunca fez uma descrição
completa do seu detetive num único texto, mas espalhou-a
pelas diversas aventuras da saga. Porém, na primeira estória
de Sherlock, encontra-se uma bastante satisfatória: "Quanto
a estatura, passava de um metro e oitenta, mas era tão
magro que parecia mais alto ainda. Os olhos eram agudos e penetrantes
[...] o nariz delgado, aquilino [...] o queixo quadrado e forte
[...] As mãos estavam invariavelmente salpicadas de tinta
e manchadas por substâncias químicas"(2).
Descrições sobre as vestes estão diluidas
nos mais ou menos 60 contos (3)
e 4 novelas. Em linhas gerais
Holmes optava por vestes de cores sóbrias, na maioria das
vezes. É verdade que o detetive fumava, mas é importante
dizer que as alusões a charutos superam as de cachimbos
nas primeiras tramas. Depois, o cachimbo de Sherlock nunca foi
descrito com aquele formato sinuoso com o qual nos acostumamos
a ver no cinema.
Ocorreu
um fato digno de nota, sobre estas questões, na novela
O Cão dos Baskervilles. Para uma melhor compreensão,
vejamos em que momento histórico foi escrita esta estória
antes de atingirmos o alvo.
Após
a estréia em formato de conto em 1891, Sherlock e Watson
seguiram uma escalada de sucesso nas páginas da Strand
Magazine. Todos amavam a dupla, dentro e fora da Inglaterra crescia
a crença de que tratavam-se de personagens reais. Qual
ocorre com o mito que arrasta multidões aos seus templos,
a lenda de Holmes arrastava os turistas para a Baker Street em
busca do quimérico apartamento 221-B. Todos estavam satisfeitos,
menos Doyle que de todas as formas tentava se livrar da personagem;
chegou mesmo (somente para parar de escrever estórias policiais)
propor uma fortuna ao editor pela nova série de doze contos.
Para sua surpresa o preço foi pago. Sem solução,
Conan decidiu matar Sherlock Holmes.
Conan
Doyle tinha um projeto literário; desejava igualar-se a
Walter Scott. Muitos estudiosos admitem que ele foi bem sucedido
em sua empresa. A Companhia Branca, romance histórico escrito
com simplicidade, consegue ser ousado e ambicioso, e pode tranqüilamente
jazer ao lado de Ivanhoé. Mas Holmes ofuscou esta obra-prima
da literatura mundial, e ainda hoje, quando se preparam coleções
de clássicos, A Companhia Branca sempre resta de fora.
Para
a tarefa de matar Holmes, Doyle escolheu o professor Moriarty.
Imortal inimigo do detetive que na saga só aparece duas
vezes. A morte foi espetacular. No conto cujo título era
"O Problema Final", os dois antagonistas despencaram
de uma cachoeira. Contudo, mais uma vez para sua surpresa, o resultado
não foi o esperado. Pode-se dizer que a mitologia sherlockiana
a qual este estudo muitas vezes se refere teve origem naquela
queda, pois, uma vez morto, nunca se falou tanto sobre o detetive
de Baker Street. Pessoas chorando, cartas de censura endereçadas
a Doyle, teatros cada vez mais cheios para assistir aos espetáculos
baseados nas aventuras de Holmes. Imagens do boné xadrez
e do cachimbo estilizados pelo teatro corriam o mundo. O palco
recriou o detetive morto, forjou-lhe o modo de agir e falar que
se tornariam suas marcas registradas, como a célebre frase:
"Elementar, meu caro Watson!" Ora, Holmes nunca disse
esta frase. Na saga, ele sempre se refere ao seu amigo como "caro",
é verdade, e sempre desdenha dos que se surpreendem com
a sua capacidade lógica com o "elementar". Contudo,
tudo junto nunca. Diz a lenda que o primeiro a pronunciá-la
foi o ator William Gillette.
Chegamos
assim a grande novela da saga (esta sim figura em coleções
de clássicos da literatura): O Cão dos Baskervilles.
Quase uma década havia se passado desde a fatidica queda,
muitos fatos importantes marcaram a agitada vida do dr. Doyle,
escrevera livros históricos, livros científicos,
inclinou-se por temas esótericos. A lenda nos fala de um
desafio lançado por pessoas próximas; amigos que
viviam acusando-o de não escrever sobre Holmes não
por opção, mas porque havia esgotado a imaginação
para criar bons casos policiais. Assim veio a luz a aventura da
maldição da família Baskerville. Uma novela
repleta de aromas londrinos e pântanos sombrios; uma estória
policial plena de inquietudes, personagens misteriosas, perseguições,
objetos que aparecem e desaparecem, um assassino sobrenatural,
cartas anônimas, uma mansão mal assombrada, um cão
fantasmagórico. Um universo que seria imitado a exaustão,
onde ninguém é o que parece ser; nem mesmo o dr.
Watson que, como cronista, deve ocultar seus graves defeitos.
Lendo, o leitor é assaltado por uma sensação
de angústia que só se experimenta diante de uma
trama bem escrita. Não é uma novela simples, seus
personagens são estruturados de modo a revelar o absurdo
contido em suas mentes: o doutor apaixonado por crânios,
o naturalista obcecado pela própria irmã, um foragido
selvagem oculto nas montanhas, o casal de caseiros: a mulher que
geme todas as noites; o marido que caminha pela mansão
quando todos se recolhem. Para enriquecer o estilo do texto, Conan
nos faz ler, durante os capítulos mais importantes, não
uma narração escrita por um autor onipotente, mas
as cartas que o dr. Watson envia a Sherlock.
Entretanto
Holmes não é o mesmo. No início da novela
os sherlockholmitos(4)
não convencem muito. À medida que a trama avança,
suas deduções vão tornando-se mais óbvias
e inócuas. Por fim, o caso acaba sem que o detetive desvende
todo o crime de maneira dramática, apontando quais foram
as pistas que o levaram aquela determinada conclusão. É
realmente frustrante o fato de que ao fim, Holmes simplesmente
não nos oferece conclusão alguma sobre o crime.
O caso é resolvido, contudo, e resolvido por Sherlock,
mas no lugar das suas geniais deduções lógicas
ele emprega a tocaia e táticas de interrogação
para chegar ao culpado. Tudo, como já dito, escrito magistralmente.
O único problema era que Doyle se esquecera de como era
a "sua" dupla; de como Holmes resolvia seus casos. Os
longos anos de distância o fizeram escrever sobre o "Holmes
dos outros". No início do capítulo 12 Watson
nos descreve seu amigo, esta descrição parece contrastar
com aquela presente em Um Estudo em Vermelho. Vejamos: "[...]
seu rosto agudo [...] ,seu terno enxadrezado e boné de
pano [...], limpeza pessoal que era uma das suas características
[...], o seu queixo [...] tão liso e sua roupa branca tão
perfeita como se estivesse na Baker Street" (5) .
A cocaína, os longos dias sem comer ou banhar-se, o uso
constante de tabaco, os tiros na parede para afastar o tédio,
todas características do antigo Holmes que sugerem não
se adequar a este novo. Outro problema não literário
da novela é a cronologia. Como Sherlock estava morto, a
trama se passa num limbo qualquer entre Um Estudo em Vermelho
e O Signo dos Quatro.
O
livro como era de se esperar, tornou-se rapidamente uma obra popular.
A pressão e as ofertas de altos pagamentos fizeram Doyle
retornar a sua mais importante criação. Assim ganhou
vida a edição de contos intitulada A Volta de Sherlock
Holmes. A estória do seu reaparecimento se chama A Aventura
da Casa Vazia. Nesta, encontramos o dr. Watson três anos
depois, em 1894, interessado pelos diversos crimes que ocorriam
em Londres; mas ao inclinar-se sobre um em particular, encontra
o seu amigo Holmes que lhe conta como sobreviveu à queda
e tudo que fizera nestes anos: dois anos passados no Tibete, viagens
pela Pérsia e Meca, estada na França, etc. Agora
estava de volta e revelava-se pois havia formulado um plano capaz
de levar a prisão o que restou da quadrilha de Moriarty.
Os leitores, não obstante os insistentes pedidos de novas
aventuras e vendas cada vez maiores, como para se vingar do escritor
que por uma década os privou do seu detetive, começaram
a criticar severamente as tramas. Há uma frase, contada
pelo próprio Doyle em sua biografia, pronunciada por um
barqueiro fã do detetive de Baker Street. Disse: "
Acho, senhor, que quando Holmes caiu daquele penhasco, talvez
não tenha morrido, mas por algum motivo, nunca mais foi
o mesmo".
O
barqueiro tinha razão. Dez anos é muito tempo e
Doyle não conseguia se desligar do mito sherlockiano vigente
quando se sentava para escrever. Mas a crença, muito divulgada
ainda hoje, de que as estórias perderam a qualidade é
infundada. Certamente no decorrer destes muitos contos e peças
aconteceram enganos, ou Conan tocou em assuntos dos quais conhecia
pouco. Em todas as coletâneas da saga existem altos e baixos,
porém na totalidade o material pode ser definido como excelente.
Um dos melhores e mais míticos contos é A Aventura
dos Homenzinhos Dançantes, publicado após a volta
de Holmes.
Dentro
do universo da saga, Sherlock Holmes e o dr. Watson tornaram-se
indivíduos tão famosos quanto fora. Os últimos
casos envolviam pessoas notorias e fatos de importância
internacional; podemos presumir que nos seus derradeiros anos
de atividade, a dupla conseguiu ganhar boas recompensas. Sabemos
que em 1897 Holmes se aposentou, trocando a cidade pelo campo,
Londres por Sussex. Para confirmar o mito, Conan Doyle recebeu
um enorme número de cartas de mulheres propondo casamento
a Holmes agora que ele vivia uma existência pacata; outras
de senhoras de meia-idade oferecendo-se para ajudá-lo a
cuidar da casa e da lavoura.
(1).-
Doyle, Conan: Aventuras inéditas de Sherlock Homes; 1987;
pág. 177
(2) -Doyle,
Conan: Um Estudo em Vermelho; 1984; pág.18
(3) - Este
"mais ou menos" nasce da incapacidade de determinar
quantos são em realidade os contos escritos por Doyle.
Quando o autor morreu, seu material inédito começou
a ser publicado, daí erguendo-se uma polêmica que
resta sem solução por parte dos teoricos. Os mais
conservadores reconhecem somente 56 contos, outros, entratando,
admitem 68. Há ainda os que defendem manuscritos que não
seguem a cronologia e os que defendem manuscritos sobre os quais
recaem dúvidas sobre a autenticidade.
(4) - Sherlockholmitos:
segundo Doyle: "Pequenas e astuciosas deduções
que, embora não raro, nada tenham a ver com o assunto em
pauta, dão ao leitor uma forte impressão de poder".
Deduções dramatizadas que chegam a conclusões
através de pequenos indícios.
(5) - Doyle,
Conan. O Cão dos Baskervilles. 1984. Pág.241.
