Nas
páginas deste romance encontra-se um dos mais profundos
personagens da ficção. Não é exagero
compará-lo à Raskolnicof, o jovem assassino de Crime
e Castigo ou Quincas Borba; pois estes, assim como o capitão
Nemo, cobriram-se de teorias para justificar seus atos. Mais adiante
poderá o leitor compreender melhor.
Publicado em 1870, "Vingt Mille Lieunes
Sous ler Mers", obteve muito êxito. Desde então,
talvez para destacar o muito de fantástico - o poder criador
de Verne - e ocultar as angústias dos personagens, criou-se
uma mística sobre a história; com o tempo, o mito
se afastou sensivelmente do imaginado inicialmente por Verne.
O livro foi adaptado para quadrinhos, cinema, desenho animado
e ganhou também algumas versões literárias
amenizadoras. Ao longo dos anos, a trama fora bastante infantilizada.
Caso se pergunte a alguém, que conhece a história
mas não leu o texto original, sobre o que trata Vinte Mil
Léguas Submarinas, a resposta certamente será: um
cientista que inventou o primeiro submarino; ou um submarino que
busca a cidade submersa de Atlântida. Respostas compreensíveis
quando considerado o mito. Contudo, inteiramente enganadas.
Se em A Volta ao Mundo em 80 Dias, Júlio
Verne trabalha com amplas generalizações, em Vinte
Mil Léguas elas praticamente inexistem. Cada pequena informação
é cuidadosamente passada ao leitor, de modo que após
as primeiras páginas fica difícil duvidar da veracidade
do relato. Trata-se de uma expedição verídica,
poderia dizer algum leitor. Assim, pode-se afirmar que o livro
é um relato fantástico escrito de modo que pareça
real.
Verne utiliza um artifício para criar
esta ilusão de realidade. A obra é um diário,
ou antes, as memórias escritas de um importante naturalista
francês, o sr. Arronmax, professor do Museu de Paris, especialista
em vida marinha, autor de um livro publicado em dois volumes intitulado:
Os Mistérios das Profundezas Submarinas. E, como o título
da estória de Verne sugere, o diário narra as experiências
submarinas que o professor Arronmax vivenciou nas vinte mil léguas
em que permaneceu a bordo do Nautilus. Neste ponto, o texto ganha
uma veracidade inconstestável - embora saiba-se ser ficção.
Arronmax, como amador das matérias marinhas, encontra nesta
expedição (forçada, o professor foi a bordo
do Nautilus quase por acaso) uma grande oportunidade para estudar
a natureza oceânica como nunca o fizera antes.
E nós, leitores, o acompanhamos em suas observações
e em seus passeios nas profundezas do mar. É como penetrar
num outro planeta. O professor classifica, com grande desvelo,
cada peixe que vê passar pela escotilha do submarino e,
muitas vezes, aponta curiosidades sobre as espécies; descreve
baleias, tubarões, corais etc, com tantas matizes que quase
quase vemos desfilar diantes dos nossos olhos. Ainda nos conta
casos dos primeiros exploradores dos mares, nautas que iam além
do mundo conhecido e enfrentavam a fúria dos elementos;
inclusive um certo Vasco da Gama. Nos intervalos entre um estudo
e outro é que o leitor encontra o sorumbático Nemo.
Nemo nunca cumprimenta o professor. Fala
pouco. Se fala, geralmente é para vangloriar-se das suas
descobertas e para demonstrar ao professor o quanto ele (capitão
Nemo) está adiante da ciência dos continentes. Contudo
o capitão é esquivo, deixando Arronmax sempre ansioso
pelo próximo encontro. Nesta altura, proposições
são lançadas, tanto pelo naturalista, quanto pelo
leitor: quem é Nemo? Qual o objetivo do Nautilus? A cada
pequeno diálogo - seco da parte de Nemo, tímido
da de Arronmax - o leitor tenta catar migalhas de informações.
Mas Verne não quer passar, neste romance, por um escritor
de livrecos. As falas são reais, cruas, entrecortadas.
Da figura soturna de Nemo, a única coisa que se descobre
é a rudeza, não o passado.
E nós, leitores, talvez pela síndrome
de Estocolmo (não esqueça ser o sr. Arronmax um
tipo de prisioneiro), começamos a admirar Nemo. Passa-se
a considerar bondade quando Nemo simplesmente realiza uma ação
prosáica. O professor chega mesmo a gostar de sua condição
de seqüestrado. E nisso que os meses vão se passando,
assim como as léguas, e tudo o que sabemos é que
a jornada de alguma forma chegará ao fim quando se completarem
vinte mil.
Falou-se
aqui em Raskolnicof. No romance de Dostoiévsk, este rapaz
criou uma teoria na qual era dado a certos homens o direito de
tirar a vida de outros homens. E ele se coloca entre os primeiros.
Mas, ao aplicar esta teoria à sua vida, o rapaz não
consegue se livrar do remorso, das dúvidas etc. Nemo é
uma espécie de pirata, um vingador, entretanto creio que
seja mais acertado classificá-lo de terrorista. Segundo
algumas pistas sutilmente lançadas pelo autor, pode-se
depreender que Nemo é o patrocinador de revoluções.
Além disso, Arronmax testemunha o capitão assassinando
pelo menos uma centena de homens. "Vingança!".
Ele diz. Num solilóquio confuso, Nemo, qual Raskolnicof,
fuzilado pela sua própria vilania, murmura: "Deus
onipotente! Basta!Basta!". O leitor é informado que
de alguma maneira a família de Nemo fora assassinada. Mas
onde? Mistério.
O final da obra foi certamente inspirado
no conto "Uma Descida ao Mailstrom", de Edgar Poe, de
quem Verne era grande admirador e de quem irá retirar outros
temas, situações e personagens. Vinte Mil Léguas
Submarinas é sem dúvida uma das obras de arte da
literatura universal, figura entre as melhores do gênero
fantástico, não apenas pela capacidade do autor
de antecipar as possibilidades técnicas do futuro, mas
pelo seu excelente acabamento.
