Suas pernas
andavam de modo autômato, acompanhando a mulher
que momentos atrás parecia querer ajudá-la. Estarrecida
e atônita, Aila Ilindiel lutava para compreender
o que fizera. Agora, prostrada diante de uma torre
circular imensa, forjada em ferro maciço e sólido,
a barda observava os intricados inscritos que
permeavam toda a parede. A passos lerdos, atravessou
portões também em metal maciço, e desceu escadas
que não pareciam terminar. Não atentava para os
detalhes da construção que a cercava, atordoada
que estava. A cada passo que dava, reminiscências
dos últimos acontecimentos vinham à tona.
**********
Abriu
os olhos lentamente, e a paisagem era o que poderia
se chamar de Um céu completamente cinzento abria-se
ao horizonte, e planícies igualmente cinzentas
pareciam estender-se infinitamente. Conforme despertava,
sua mente trazia às claras o que havia acontecido:
o golpe de machado fatal que espatifara suas vértebras,
perpetrado por aquele monstro bárbaro sanguinário,
fazendo-a perecer sem agonia.
Instintivamente
levou a mão ao local do ferimento, e viu que nada
havia. Foi então que atinou a olhar para si mesma,
vislumbrando-se no seu vestido púrpura preferido,
e então juntou os fatos de maneira cabal — a pele,
sem tom, provava o que sua mente se recusava a
aceitar. Estava morta.
Levantou
a cabeça, atordoada. Então... estava morta. Olhou
outra vez ao seu redor, enquanto buscava nas profundezas
de suas memórias informações sobre o destino daqueles
que morrem. Talvez tivesse até conseguido recordar
mais detalhes, se não tivesse percebido diversos
outros seres esbranquiçados como ela, vagando
aparentemente sem destino. Almas sem corpos, tão
confusas e perdidas quanto ela.
Tentou
desvencilhar a visão, e concentrar seus pensamentos.
O que as diversas conversas em estalagens e tavernas
poderiam revelar-lhe agora? Lembrou-se de uma
conversa com um nobre da cidade de Águas Profundas,
que desejava muito mais do que um vinho quente
e uma conversa amena para aquecê-lo naquela noite.
“Segundo
o que me disse um sacerdote do Senhor dos Mortos,
as almas são levadas ao Plano da Fuga, regido
pela neutralidade de Kelemvor. Lá, elas aguardam
até que um enviado do deus ao qual seus votos
eram dedicados venha buscá-lo.”
“Entretanto, as almas dos descrentes
têm um destino nefasto: são levadas para proteger
a Cidadela dos Mortos, onde passam a eternidade
a serviço do deus.”
Um
sussurro que parecia produzido pelos ventos trouxe
Aila de volta. Ao longe, pôde observar uma enorme
cidadela, de altas torres e muralhas, esbranquiçadas.
Desnorteada e emaranhada em seus pensamentos,
a barda de longas madeixas loiras e formas generosas
seguiu até a famosa Necrópole.
E
se a sua fé não fosse o suficiente? E se o que
ela fizera em nome da Senhora dos Cabelos de Fogo
não fosse o bastante? Sune, a deusa da beleza
e do amor, pregava o auxílio aos outros, para
que eles também fossem dignos de conhecer os encantos
da paixão. Aila não havia sido muito ativa em
sua busca nos últimos tempos, mas outras causas
demandaram-lhe a atenção. E estava certa de que
havia promovido o nome da deusa. E sim, isso deveria
bastar. A Senhora dos Cabelos de Fogo saberia
recompensá-la. Com a confiança renovada, a barda
continuou o caminho, embora um tanto incerta de
onde ele fosse acabar.
Conforme
se aproximava da cidade, pôde divisar melhor os
contornos das muralhas, e seus ouvidos filtraram
o que julgava até então ser o uivo do vento: gritos
e lamentos, vindos da cidade, proferidos pelas
almas descrentes, que não negavam devoção a qualquer
divindade. Então era assim que os ateus passavam
a eternidade? Presos a uma cidadela, tornando-se
parte de suas fundações?
Assustada,
sentiu as pernas fraquejarem. Decerto até o mais
devoto dos homens se abalaria com tamanha privação.
Instintivamente, sem conseguir desviar o olhar
dos rostos de todas aquelas pessoas, afastou-se,
tropeçando em um desnível de terra. Abalada demais
para levantar-se, tentou se arrastar, quando uma
voz feminina e suave surpreendeu-a:
“Aila
Ilindiel, seu lugar não é aqui.”
Virou
o rosto, surpreendendo-se com a visão: uma belíssima
mulher, de traços harmoniosos e delicados, pele
pálida e longos cabelos vermelhos estendia-lhe
a mão, em um gesto benévolo de ajuda. Do alto
de suas costas saiam felpudas asas num tom escarlate,
e a mulher esboçava um leve sorriso tranqüilizador.
Em frangalhos, Aila aceitou a ajuda, e ambas seguiram
para longe da muralha.
“Como
sabe o meu nome?”
“Eu sei de
muitas coisas, Aila. E você já sabe o que aconteceu,
não?”
A
jovem demorou um pouco, relutante em aceitar o
fato, e assentiu com a cabeça silenciosamente.
“Ótimo”, ouviu a desconhecida sussurrar.
“Então
você sabe também o que acontece com as almas a
partir de agora, não é?”, sem esperar a resposta,
continuou: “Sabe que aquele responsável por sua
morte, aquele orc desprezível de nome Tarûk, também
está morto? E que em breve estará recebendo sua
recompensa? A recompensa por ter espalhado toda
aquela destruição, por ter causado dor a tantas
pessoas.”
Aquelas
palavras fizeram Aila parar a sua caminhada. Claro,
se ele de fato morrera, sua alma seria recompensada
por seu deus monstruoso de único olho. Discretamente,
a desconhecida sorriu ao ver a reação da barda.
Estava chegando aonde queria. Confiante, continuou
seu discurso:
“Sim,
ele estará recebendo dons por ter matado tantas
pessoas, e por ter disseminado a morte entre os
elfos da Alta Floresta. Isso é o que você considera
justiça, Aila Ilindiel?”
“E...
o que eu posso fazer para impedir?”
“Junte-se
a mim. Eu concederei a ti os poderes para a justiça
necessária.”
Aila
estava confusa. Havia perecido pela lâmina daquele
machado, e claro que faria alguma coisa se pudesse.
Mas aqueles eram desígnios divinos: ele receberia
seu descanso eterno, assim como ela também. Insegura,
a jovem olhou para a mulher, que até então nem
se preocupara em dizer o seu nome.
“Mas...
esta justiça não deve ser feita pelas minhas mãos.
Isso não é correto. Não... não sou eu quem decido
isso.”
“Preciso lembrá-la
então, Aila de Águas Profundas, que sua morte
e a de seus companheiros foram em vão? O exército
de orcs ainda se concentra na região, e em breve
os elfos da cidade de Sylvan receberão retaliações.
Você sabe que eles não poderão resistir.
E você poderia evitar esse derramamento de sangue
inútil. Não era isso que você queria em vida,
Aila Ilindiel?”
“Esses assuntos...
já não me concernem.”, respondeu a barda, embora
não estivesse tão segura de suas palavras. “Eu
morri em prol dessa causa. Esses fatos... já não
me dizem respeito.”
Num
ímpeto de coragem, sentido estar indo contra todas
as suas vontades, deu as costas à desconhecida.
Não sabia quem ela era, mas parecia uma criatura
celestial – as feições harmoniosas, agora entristecidas,
apunhalavam a barda. Sentia como se tivesse ferido
uma beleza até então imaculada, até que novas
palavras da mulher alada a fizeram parar mais
uma vez:
“E
se eu disser que o seu irmão gêmeo, Alexander
Ilindiel, também pereceu do mesmo golpe que tirou
a sua vida?”
Então
se recordou do par de anéis de platina que comprou
com a insistência do irmão. Em questão de segundos
lembrou-se da prece que Alex fizera momentos antes
de invadirem o acampamento orc, explicando que
os ferimentos que Aila viesse a sofrer seriam
partilhados por ele.
“E
não pense em protestar. Eu quero proteger você.”
“Você está
dizendo... que... ele morreu... por minha causa...?”
A
mulher não respondeu, e nem precisava fazê-lo.
Mais uma vez, Aila levou a mão ao local onde deveria
estar o ferimento, e imaginou a dor que seu irmão,
um guerreiro santo, treinado para servir a Torm,
sentira. E a morte dele teria sido tão vã quando
a sua.
“Ele...
está aqui? Nesse lugar?”
“Sim, está.”
“Leve-me até
ele! Leve-me até ele e... e então terá sua resposta.”
“Infelizmente,
as coisas não funcionam assim, Aila. Meus patronos
lutam pela justiça verdadeira. A justiça que você
também deseja. Você não deve me temer.”
Passaram-se
alguns minutos de silêncio que pareciam se estender
por uma eternidade. Estava dividida entre o que
acreditava ser a ordem celestial e o que seu coração
desejava. Queria ser capaz ignorar aquele pedido,
mas quem quer que tivesse mandado aquela mulher
parecia compartilhar dos desejos de Aila. Respirou
fundo e quebrou o silêncio que perdurará até então:
“Eu
aceito. Leve-me até meu irmão.”
A
mulher tocou a barda no ombro, que em um piscar
de olhos viu-se em outro lugar. Estava agora próxima
às muralhas, mas isso não a preocupava agora.
Reconheceu o irmão, com suas grandes e exuberantes
asas felpudas e esbranquiçadas, lutando entre
demônios que pareciam estar realizando um ataque
à Necrópole de Kelemvor.
“Ele
está em problemas. Vamos ajudá-lo.”
Aila
assentiu silenciosamente, e iniciou uma canção
épica, que conhecia desde criança. Logo suas palavras
soaram nos corações dos soldados de Kelemvor,
e Alexander não tardou a reconhecer a irmã. Se
não estivesse tão ocupado, teria se perguntado
como ela teria chegado até ali. Com as esperanças
renovadas, desferiu um ataque certeiro no seu
oponente.
Se
não conhecesse seu irmão, Aila poderia dizer que
ele de fato viera dos planos celestiais: alto,
forte e com cabelos loiros que desciam até os
ombros. As linhas do rosto eram definidas, extremamente
semelhantes às do pai, que sequer chegou a conhecer,
e acompanhadas por olhos azuis límpidos e claros,
capazes de enxergar o mal no coração das pessoas.
Do alto das costas, surgiam duas asas felpudas
e brancas, manifestação recente de sua herança
celestial. Asas essas que acabavam de ser feridas
por um raio de fogo concentrado, lançado dos olhos
do construto com o qual combatia.
Era
uma criatura bizarra, que possuía um corpo semelhante
ao de uma aranha de órbitas vazias. Claramente
artificial, se prostrava ameaçadora diante de
Alexander, que, portando uma grande espada brilhante,
desferiu dois ataques nas patas da criatura, mas
que pouco a afetaram. A desconhecida de cabelos
vermelhos bateu levemente as asas, elevando-se
um pouco, e logo em seguida tensionou o arco,
disparando duas flechas na direção do construto.
Uma delas cravou-se no chão, enquanto a outra,
com sua ponta flamejante, acertou o alvo.
Então
um som semelhante a uma corneta soou ao longe,
e a horda demoníaca entendeu aquilo como sinal
de retirada. O construto, instruído para essas
situações, desceu suas grandes pinças aracnídeas
e prendeu Alexander, sem muita dificuldade, e
logo iniciou sua caminhada. Aila então iniciou
uma nova e breve canção, invocando um hipogrifo,
vindo dos planos de Sune. Usando o idioma dos
planos celestiais, num tom um tanto desesperado,
ordenou que atacasse a criatura. Enquanto isso,
a mulher realizou dois tiros certeiros, um deles
entrando na órbita vazia do construto, que em
seguida caiu inanimado no chão. A barda respirou
aliviada, cancelando a magia e agradecendo à Senhora
dos Cabelos de Fogo, enquanto seu irmão alçava
vôo em direção à jovem.
“Aila,
como... chegou até aqui? Como descobriu onde eu
estava?”
“Ela veio
comigo, Alexander Ilindiel, paladino de Torm.”,
falou sem esperar a resposta da barda, e em um
tom repentinamente frio. Tornando o olhar para
a jovem, continuou: “Seja breve com suas despedidas.”.
“Despedidas...?
Aila, do que este demônio está falando?”
“De-demônio?”,
gaguejou a jovem, estarrecida.
“Ela virá
comigo, paladino.”, a voz firme e seca da erynie[1]
cortava os ouvidos de Alex. “Serão concedidos
a ela os poderes para fazer a justiça que lhe
foi negada.”.
“E você vem
me falar de justiça, criatura infernal? Justamente
você?”, aumentou o tom de voz, e levou o olhar
para a sua irmã. “E você, onde estava com a cabeça
quando ouviu as palavras dessa mulher? O que deu
em você, Aila?”.
“Você não
vê, Alex?!”, gritou a barda, em desespero. “Eu
não sabia de nada! E eu não posso discernir o
mal em alguém apenas com um olhar! Suponho que
para você, paladino, tivesse sido mais
fácil! Além do mais... eu...”, sua voz sumia enquanto
sentia a garganta apertar pelas lágrimas sufocadas.
“Agora é tarde.
Ela não poderá quebrar o Pacto que fez comigo.”,
falou a erynie “Aila terá as recompensas conforme
o acordo: poderá fazer justiça a quem a matou,
e será capaz de resolver os problemas terrenos
pelos quais pereceu. Para tanto...”.
“Eu não acredito
que você fez isso, Aila!”, explodiu Alexander,
desesperado. “Acha que essa é a verdadeira forma
da justiça? Acha que é assim que se faz o bem,
barganhando com demônios?!”.
A
barda não conseguia sequer falar. Agora havia
entendido tudo perfeitamente, tão claro como a
água. Sentia as pernas tremerem e o coração acelerado,
principalmente por saber que não haveria volta.
Em um impulso, abraçou o irmão, enquanto se policiava
para não chorar. Desatento a isso, ele correspondeu
ao abraço, enquanto sussurrava:
“Eu
não acredito, Aila. Minha irmã, como pôde? Como?
Por quê?”
“Então essas
serão suas últimas palavras a sua irmã, Alexander
Ilindiel?”
“Eu tenho
todo o direito de passar um sermão na minha irmã,
demônio! Cale-se!”
“É assim que
você quer que ela se lembre de você, paladino?”
Soltando-se
do abraço do irmão, Aila levantou o rosto, encarando-o
com o par de olhos violetas banhados em lágrimas.
“Eu
também fiz isso por você, Alex.”
“Venha, Aila.”,
chamou a erynie. “Quanto a você, paladino, espero
não vê-lo nunca mais.”
“O mesmo não
posso dizer de você, demônio. E Aila, eu farei
o que for necessário para trazer paz à sua alma.”
A
erynie segurou a barda pelo braço, desaparecendo
logo em seguida. Ainda tentando digerir o que
aconteceu, Alexander deixou-se cair sentado, sentindo
o rosto ser aquecido por lágrimas furtivas, enquanto
dizia:
“
... nem que isso custe a minha vida.”
Enquanto
caminhava na direção de uma grande torre de brilho
metálico, Aila sentiu novas lágrimas escorrerem
pelo seu rosto. As últimas palavras que ouvira
de Alex ainda ecoavam-lhe na mente:
“Eu
farei o que for necessário para trazer paz à sua
alma.”
Em
outras palavras, ele seria capaz de matá-la, se
preciso fosse.
“Entre,
Aila.”
Se
não fossem as circunstâncias, a visão seria impressionante.
A grande torre era completamente feita de metal
— as paredes, o chão, as escadas. As altas e opressoras
paredes incandescentes mostravam-se praticamente
intransponíveis. Estátuas de metal, das mais variadas
temáticas, decoravam o lugar, que também trazia
inscrições em baixo relevo, brilhando incandescentes.
Andaram
até um lance de escadas que desciam em espiral,
dando em outra porta de metal maciço, entalhada
com motivos infernais. Imaginava a quantidade
de sortilégios que deveriam proteger aquele lugar,
desencorajando qualquer possibilidade de fuga.
Desceram por vários andares, e na maioria deles
Aila pôde reconhecer claramente algumas armadilhas
mágicas. E se mesmo seus olhos destreinados puderam
notar, quantas deveriam ter?
“Nova
serva?”
A
voz era grave e profunda, e a barda não deixou
de sentir repulsa quando viu quem a emitia. Era
também um demônio daquela espécie, embora possuísse
asas das mais negras possíveis. Tinha braços e
pernas fortes, e sua pele era repleta de cicatrizes
— algumas tão antigas que se mostravam esbranquiçadas
pelo tempo. Nos dedos brilhavam anéis vários,
e um par de braceletes adornava os braços fortes.
Ela caminhou sem cerimônias na direção da barda,
que instintivamente recuou. A acompanhante assentiu
em silêncio, afastando-se da jovem. A erynie de
asas negras examinava a barda atentamente, olhando
cada detalhe de sua anatomia.
“Esquálida
e patética... venha comigo.”
Desceram
mais um lance de escadas, e Aila pôde finalmente
vislumbrar o que imaginava ser o inferno em um
só momento: pessoas acorrentadas às paredes, algumas
gemendo sem forças, e outras sequer pareciam respirar.
As paredes eram decoradas com atrocidades das
mais diversas, e a jovem não conseguia desviar
o olhar. Sendo puxada, a barda teve os pulsos
envoltos por algemas grossas e enferrujadas. A
cada momento, a certeza de que percorria um caminho
sem volta apunhalava seu coração.
Logo
apareceram outras erynies, que a despiram sem
a menor cerimônia. Os presos olhavam curiosos,
enquanto outros agradeciam a algum deus por aquilo
não estar acontecendo com eles. Vertiginosamente,
Aila olhou por toda a sala, desejando alguém que
pudesse ajudá-la. Cercada de criaturas que não
conhecia e diante de um destino nefasto, se sentiu
completamente sozinha. Entre sussurros, fez uma
prece de perdão.
Sentiu-se
sendo levantada, e escutou o barulho de correntes
sendo movimentadas por um tosco sistema de roldanas.
Completamente desnuda de corpo, sentia-se cada
vez mais desprovida de espírito. Conforme subia,
sentiu arranhões no pulso, causados pelas algemas,
enquanto filetes de sangue escorriam por seus
braços, fazendo um contraste irônico: sangue vermelho
em carne branca. Fechou os olhos, até que ouviu
as correntes pararem.
Olhando
para baixo, viu um grande poço circular, que borbulhava
algo parecido com lava. Sentiu-se sendo baixada
lentamente, e então discerniu o que a esperava
lá em baixo: sangue fervente, borbulhante. Em
desespero, começou a se debater, mesmo que parte
de si soubesse ser em vão. Ouviu pequenas risadas
entre os flagelados, assim como as erynies. Seus
pulsos se feriam cada vez mais, embora fosse a
última coisa na qual pensasse agora. Queria se
livrar daquilo; queria, de um modo infantil, estar
sonhando e acordar assustada, suando. Entretanto,
aquilo era real – bem real. Logo ela poderia provar.
Seus
pés tocaram o líquido quente — e ela gritou. Dobrou
os joelhos, enquanto as correntes continuavam
baixando sonoramente. As risadas das erynies ecoavam-lhe
nos ouvidos, enquanto as palavras do irmão retumbavam
em sua mente. Não era aquilo o que de fato queria
— era tão errado assim desejar um pouco de justiça?
Será que evitar o conflito entre duas raças, e
um grande derramamento de sangue, valeria tão
alto preço?
Seu
grito ecoou mais uma vez, quando, mesmo encolhida
e com o corpo já dolorido, sentiu o sangue fervente
tocar-lhe a pele novamente. Com os braços esticados
e o corpo reteso há tanto, não conseguiu resistir
— mergulhou as pernas até a altura do joelho,
conhecendo o significado de dor lancinante.
O sangue quente machucava a pele, pele que sabia
ser alma, e Aila desejava que fosse uma dor ainda
maior, e que lhe tirasse a vida de uma vez. Pensou
em quantas pessoas não haviam passado por aquele
tormento, em quantos gritos já não haviam ecoado
naquela sala.
As
risadas diminuíram, mas não os gritos da barda.
Sentia a corrente estremecer a cada vez que a
corrente balançava, descendo lentamente, assim
como podia sentir as batidas desesperadas do seu
coração. De modo vão, tentava agarrar-se às boas
lembranças: os momentos bons com Ahlan, seu tutor
e amante; do abraço cálido de Vanir, aquele elfo
bondoso por quem guardava tanto carinho. O que
eles pensariam quando soubessem daquilo?
Submersa
até a cintura, ainda tinha forças para se debater,
embora quisesse ter forças para se libertar, ou
não mais tê-las e acabar logo com aquele sofrimento.
A dor era terrivelmente constante. A garganta
secava, mas não parava de gritar, e nem poderia,
pois a dor não deixava. A corrente baixava cada
vez mais, emergindo-a lentamente, e chacoalhares
metálicos soavam violentos, acompanhando os gritos
desesperados da jovem.
Apesar
de costumadas àquele espetáculo, a vã esperança
demonstrada perturbava algumas erynies. Talvez
porque fizesse vir à tona memórias de quando aquilo
aconteceu a elas. Outras olhavam curiosas, talvez
pensando que havia algo de irônico em ver alguém
de sangue celestial ser transformado em demônio.
Aila
prendeu a respiração, e fechou os olhos, conforme
sentiu-se afundar completamente no poço de sangue.
Tentava levantar o rosto, mas graças à dor, já
não conseguia fazê-lo. Sentiu o corpo completamente
submerso, enquanto ainda tentava forçar os braços
para elevar-se acima do nível do poço. Em vão.
Logo
seu peito começou a doer, e ela sentiu que precisava
de ar. Sabia o que iria acontecer, mas não pôde
resistir e relaxou os pulmões, expirando toda
e qualquer esperança de vida. Abriu os olhos e
viu apenas o vermelho forte diante de si, e sentiu-os
ardendo. Tentou gritar, e além de ter seu grito
abafado, sentiu o gosto do sangue quente e viscoso
descendo pela garganta, queimando-lhe as entranhas.
A
corrente foi parando lentamente, até não mais
se movimentar.
Silêncio
no calabouço.
As
roldanas foram mais uma vez ativadas, e logo a
corrente foi subindo, mostrando uma Aila de tez
bem mais pálida, cabelos loiros encharcados de
sangue, e asas escarlates a brotarem do alto das
costas, com sangue pingando por toda a sua extensão,
conforme se abriam lentamente.
Nenhum
movimento.
Até
que ela inspira sonoramente. Renascida.
Abriu
os olhos, outrora de um violeta misterioso, possuindo
agora um brilho estranho, capazes de se destacarem
sozinhos na escuridão. Da boca vertia um sorriso.
Maligno. Cruel. Demoníaco.
[1]
Erynie: o termo
erynie vem das criaturas mitológicas erínias,
também chamada pelos romanos de Fúrias.
Eram deusas horríveis, e tinham a função
de punir os mortais por crimes de sangue entre
famílias. E conforme sua influência
religiosa aumentava na sociedade, sua imagem foi
ligada ao Inferno.

Sobre o Autor

Allana Dilene
|
Allana Dilene
mora em João Pessoa, Paraíba, e
joga RPG desde os 12 anos. Conheceu os Últimos
Dias de Glória por acaso, enquanto
procurava sobre alguns monstros de D&D. Achou
a idéia do site muito interessante e resolveu
ajudar. Formou-se em Letras na Universidade Federal
da Paraíba, estuda ocasionalmente e adora
literatura. |