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Por Louis Bear

Os Últimos Dias de Glória - Contos

 

Por uma noite longe da solidão


10 de Kythorn de 1364
Norte de Cormyr
Algum lugar da orla da floresta de Cormanthor

 

     Iorek moveu lentamente a mão em direção à sua face, enxugando de maneira violenta uma lágrima com a palma de sua mão, a aspereza desta ferindo seu rosto curtido de sol e sujo com a poeira da estrada.
     Chutou sem animo alguma terra em direção à pequena fogueira, onde tinha preparado uma refeição bem simples. As chamas se apagaram facilmente, mas em sua mente a imagem de uma outra fogueira, deixada lá atrás, onde antes morava com sua amada Gleena, teimava em não se apagar.
     O cavalo (seu único companheiro de viagens) pastava a poucos metros dele, aparentemente tranqüilo, o que era um bom sinal: estavam seguros! Inúmeras vezes o animal demonstrara certa inquietação e ele aprendera a confiar em seu amigo, pois na grande maioria das vezes eles se viram em situações que só não eram piores devido aos avisos de sua montaria.
     Resignou-se a cavalgar mais alguns quilômetros rumo ao norte, seguindo a orla da floresta de Cormanthor e tentar encontrar um lugar seguro para passar a noite... A noite! Já passara por poucas e boas em noites nas proximidades de Cormanthor... Aquele lugar fervilhava de criaturas noturnas, e ele ainda não se acostumara com a idéia de se tornar um notívago para melhor lidar com estas situações... Nem tão pouco seu cavalo!
     Lembrou-se da última vez em que havia dormido em uma cama confortável, ao lado de sua amada, dois dias antes de sua morte. A dor da perda parecia crescer a cada dia, sem deixar espaço para mais nada em seus pensamentos. E a cada passo que dava, cada bocado de comida que mastigava, cada flecha que atirava contra as criaturas nojentas, tudo parecia se passar num pesadelo que teimava em não findar.
     Montou Ramsay e colocaram-se a caminho, arco e flechas na mão e cabeça baixa, tentando esconder dos deuses as lágrimas que rolavam por seu rosto sujo e molhavam a barba negra e cheia.

* * *

     Ao longe, por detrás de algumas árvores, enxergou uma tênue fumaça azulada que subia de vários pontos rumo às nuvens que anunciavam uma chuva não muito forte antes do anoitecer.
     Pela primeira vez em quase dois anos, Iorek decidiu aproximar-se da pequena vila, de onde subia aquela fumaça aconchegante das chaminés, e descobrir se existia alguma espécie de taverna para beber um gole de vinho e, quem sabe, dormir em um lugar seguro e confortável novamente.
     Ramsay ia a passos lentos, enquanto ele observava a vegetação ao redor, curioso em saber que tipos exóticos de plantas deveriam existir por entre os conhecidos carvalhos e faias, já que ele se deslocava cada vez mais para norte de sua cidade natal, Hutail, onde conhecia, se não completamente, com certeza uma grande parte da flora que a cercava.
     A exuberância da vegetação o hipnotizou por um bom tempo. Seu cavalo ia devagar, como se entendesse os desejos do dono. Flores da época brotavam nos arbustos que em breve estariam carregados de toda a sorte de frutinhas vermelhas de odores fascinantes e paladares delicados. Em cascatas verdes algumas espécies de samambaias encobriam a visão como uma cortina semi-aberta para a escuridão da mata fechada que se espalhava muito além da imaginação de Iorek.
     Subitamente ele fez com que Ramsay parasse. Guardou a flecha que trazia pronta na corda do arco e atravessou este em suas costas. Desceu vagarosamente de sua cela e deu uns quatro ou cinco passos em direção à orla da floresta, parando com o rosto a poucos centímetros de uma flor com aspecto de campânula. Suas folhas lanceoladas, três delas, de um vermelho vivo, despontavam na base do caule. Uma Tulipa, tão perfeita em suas formas que deveria ter sido feita pelas próprias mãos de Mieliki.
     Como era perfumada! E como era doloroso olhar para aquela perfeição da natureza e lembrar-se de que era esta a flor preferida de sua Gleena.
     Podia se lembrar com clareza de uma vez em que se embrenhara na mata fechada apenas para colher algumas delas e presenteá-las à sua amada. E de como terminara por ganhar um jardim imenso e verdejante em frente à janela de seu quarto, presente de um senhor élfico. Glenna, os olhos marejados de lágrimas, havia retribuído o presente com seus beijos e carinhos. E não poderia existir para Iorek pagamento mais a altura, por qualquer esforço que pudesse fazer por ela.
     Ele a amara intensamente cada segundo de suas vidas em conjunto. Desde que descansara os olhos sobre ela pela primeira vez, anos atrás, ele teve certeza de que a amava e de que moveria céus e terras para ter seu coração e que, depois de alcançar suas graças, empenhar-se-ia em dobro para fazê-la feliz.
     Sim, Iorek o fizera. Conseguira conquistar aos poucos sua confiança, depois seu amor. Haviam sido felizes como duas crianças, aquelas criaturinhas que precisavam tão pouco para sorrir. Ele a fizera sorrir incontáveis vezes. Arrancara lágrimas de felicidade e paixão de sua Gleena. Dentro de seus limites como caçador dera a ela uma vida de rainha. Novas lágrimas de dores antigas afloraram dos olhos dele. Sua mão colheu a flor num gesto de reverência e ele pronunciou em voz baixa um agradecimento pela dádiva. Era para Corellon a sua prece.
     Subiu novamente nas costas de Ramsay e seguiu caminho, o arco novamente nas mãos e a flor presa em uma reentrância de sela. Pouco tempo depois já dava pra ver as casas, acolhedoras e alegres, por entre os troncos, e sentir o cheiro de boa comida invadir suas narinas. Mais alguns passos e estaria de volta à civilização que abandonara sem remorsos tanto tempo atrás.
     Subitamente, duas flechas cravaram-se em frente a Ramsay, que se ergueu nas patas traseiras, assustado. Iorek saltou de sua sela e tencionou a corda do arco, procurando com os olhos hábeis de caçador o autor dos disparos e pronto para atirar assim que tivesse um vislumbre de seus atacantes.
     -- Solte a arma, viajante, ou seremos obrigados a abatê-lo sem piedade! - A voz humana soou autoritária e sem brechas para um dialogo. Iorek depositou o arco no chão e amaldiçoou mentalmente sua estupidez. Onde diabos estava com a cabeça que esquecera da regra numero um de sobrevivência? Nunca deixe de prestar atenção à sua volta - gritava sua mente, agora totalmente desperta e pronta para uma reação em frações de segundos. - Assim está melhor - retrucou a voz. - O que deseja por estas bandas, viajante?
     -- Apenas um bom prato de comida e uma cama para descansar o corpo e a mente, cansados de uma longa jornada - respondeu ele em bom tom. - Onde está a velha hospitalidade do norte?      Agora recebem com flechas os seus visitantes?
     -- Precaução, cavalheiro, nada mais que isso - respondeu um rapaz saindo de trás de um arbusto armado com uma pequena espada. - O que temos aqui? Onde roubou esse cavalo e essas belas armas?
     -- Roubei? Estas armas me pertencem, assim como o meu cavalo, Ramsay - que audácia! Acusá-lo de ser um ladrão! Era demais para sua cabeça! - De onde tirou a idéia de que eu roubei estas coisas?
     -- Companheiro, alguém que tenha essa aparência e que cheire tão mal, com certeza não tem ouro o suficiente nem para pagar um banho decente! - Os outros homens se aproximaram e riram, divertindo-se com a situação.
     Por todos os demônios! O homem deveria estar falando a verdade! Quando tinha sido a última vez que tomara um banho e fizera a barba? Nem se lembrava! E devia ter sangue de goblins seco em suas roupas e pele! Onde estivera com a cabeça?
     -- Ó, deuses! Você tem razão! Eu estou fedendo! - E sorriu amigavelmente. Colocou a mão lentamente num bolso, para que eles não suspeitassem de algum tipo de hostilidade, e tirou de lá um punhado de moedas. - Escutem! Não podemos discutir amigavelmente sobre os motivos de meu estado depois que eu tomar um bom banho e me barbear? Podemos fazer isso tomando um gole de vinho! Por minha conta, certo?
     A perspectiva de beber de graça e de ouvir estórias de um forasteiro pareceu aplacar os ânimos, mas o rapaz armado com a espada não dava mostras de que se venderia por tão pouco.
     -- Se você concordar em entregar todas as suas armas e seu cavalo, até que tenhamos certeza de que não é um ladrão, podemos arranjar o banho, o barbeiro e todo o vinho que você puder pagar - disse ele. - Caso contrário, dê meia volta e siga seu caminho, viajante!
     Sem pensar duas vezes, Iorek soltou o cinto com suas espadas e passou para um dos homens à sua volta. Abaixou-se, pegou o arco e passou para outro. Mas não fez qualquer movimento em direção ao cavalo.
     -- Ele não obedecerá a ninguém mais, é melhor que eu o leve para onde vocês quiserem - falou Iorek.
     -- Tolice - retorquiu o rapaz, que aparentemente era o líder. - Se ele realmente não me acompanhar será a prova de que lhe pertence - e foi pegando as rédeas para levá-lo embora.
Ramsay não moveu um só músculo e alguns dos homens ensaiaram risadas mal contidas. Iorek sorriu e deu um passo para o lado, olhando seu cavalo bem nos olhos.
     O pobre sujeito, para não fazer feio diante de seus companheiros, deu uma esticada mais violenta nas rédeas e em resposta Ramsay colocou-se nas patas traseiras, puxando violentamente o infeliz para cima e derrubando-o como se fosse um boneco de pano.
     A platéia, às gargalhadas, cometeu o erro de não se afastar, e uma infinidade de coices, cabeçadas, mordidas e patadas foram desferidas em todas as direções, pondo a nocaute a grande maioria dos homens.
     -- Ôah! Ramsay! - Iorek, sorrindo e ileso no meio da confusão, passou a mão no pelo de seu amigo, tranqüilizando o animal e ajudando o rapaz que tinha sido atingido primeiro. - Eu bem que avisei, se eu tivesse feito uma aposta, tomaria meu banho, faria minha barba e sairia daqui embriagado com todo o vinho que vocês pudessem me pagar! E minha bolsa continuaria cheia! - Tomou as rédeas e começou a caminhar. - Vamos, o vinho fará com que esqueçam a dor de terem sido derrotados tão facilmente por um cavalo!
     Sorrindo ainda, Iorek pensou com desdém que teria sido muito fácil ele mesmo ter dado cabo de todos aqueles idiotas, mas agindo assim estaria se privando do prazer a muito esquecido e tão desejado de dormir em uma cama quente e vestir uma roupa limpa. Seria uma estadia cara, com tantos para beber de seu vinho, mas ele teria outra companhia que não a do seu cavalo por uma noite, e ele ansiava tanto por isso que daria até sua ultima moeda para que isso acontecesse.

* * *

     Acordou de repente respirando com dificuldade, o ar teimando em não ficar nos pulmões. Uma grande confusão em sua cabeça, causada por um sono tão profundo e anormal, impediu que ele entendesse de imediato o que acontecia. Aos poucos foi recobrando a lucidez. As roupas totalmente encharcadas grudavam-se ao seu corpo dolorido.
     Abrindo um pouco os olhos, que pareciam querer se afundar em suas órbitas de tão irritados, Iorek pôde ver um grupo de homens e mulheres ao seu redor, alguns deles munidos de baldes agora vazios, e sorrisos de escárnio nas faces.
     -- Acorde! Acorde, bastardo! - Gritou Udrow, o jovem que no dia anterior tentara dominar seu cavalo e levara uma surra. - Está na hora de ir andando, vagabundo!
     Iorek tentou mentalmente por ordem às coisas: havia entrado na vila e tomara um banho. Depois fizera a barba. A ultima coisa de que se lembrava é de estar sentado numa taverna com mais da metade dos vilões e ter pedido uma rodada de vinho para todos, por sua conta. Então, começou a beber. Era depois disso que tudo estava confuso! Ele era forte para as bebidas, mas não se lembrava de ter chegado nem ao segundo copo. Drogado!!! Ele havia sido drogado!
     -- Porque diabos vocês me... - começou a perguntar. Mas não teve tempo de terminar a frase. Com um chute em sua perna, Garrick, um outro que estava na confusão do cavalo, fez com que ele se calasse.
     -- Siga seu caminho, que este não é um lugar para vagabundos - vociferou Udrow, gotículas de saliva se espalhando pelo ar e voando na direção de Iorek.
     -- Mas o que... - outro chute, desta vez de um outro que não lembrava o nome.
     -- Não está ouvindo, miserável? - As pessoas ao seu redor riram, divertidas pelo espetáculo. - Siga seu caminho e não volte a esta vila, ou terá que merece, seu rato!
     -- Calma! Estou indo! - e colocou-se de pé, com dificuldade. O cabelo molhado caiu na sua face em bolos pesados e impediu momentaneamente sua visão. Pego desprevenido, foi empurrado na direção de um pequeno córrego, que era a fronteira leste da vila. Escorregou e foi parar no meio do riacho, sentado. - Hei! Minhas coisas! Meu cavalo!
     -- Coisas? Cavalo? Do que está falando? - perguntou divertido um dos vilões. - Falando desse jeito nem parece que é um pobre miserável que veio pedir esmola em nossa vila! - e todos gargalharam com gosto.
     Então era isso! Fora drogado e depois destituído de todos os seus bens! Suas espadas, seu arco, sua armadura, seu cavalo... e o pior: as poucas lembranças que tinha de sua Gleena! E agora eles o escorraçavam para poder dividir entre si os espólios!
     -- Tudo bem! Eu estou indo, certo? - Iorek se levantou, olhou ao redor e viu que seus gentis hospedes estavam armados. Deu alguns passos para trás, mantendo os olhos bem grudados nos seus agressores, afim de não levar uma punhalada pelas costas. Já que haviam agido daquela forma com ele, nada impediria que eles lhe acertassem uma flecha enquanto se afastava.
     Depois de se afastar um bom pedaço aos tropeções, virou-se e correu como um louco, mata adentro, desviando dos galhos mais baixos das arvores e tentando colocar entre ele e aqueles loucos o maior pedaço de chão que pudesse.
     Correu por vários minutos, sem parar nem por um segundo. Quando teve a certeza de que estava seguro novamente, parou. E só então percebeu onde estava. Várias construções semi destruídas se erguiam ao seu redor, não muito distantes dele. O musgo e as trepadeiras tomando conta de tudo, deixando claro que aquilo não era uma coisa recente. Pórticos sombrios e buracos nas paredes, que outrora teriam sido janelas com belos vitrais, espreitavam silenciosos. Tudo parecia estranhamente quieto.
     Definitivamente não era um bom lugar para estar só, mesmo que ele não fizesse idéia de onde estava com exatidão. Sabia que era uma ruína. E ruínas eram esconderijos prediletos de toda a sorte de criaturas.
     Iorek levou a mão automaticamente à cintura, mas não encontrou a espada. Olhou em volta e não tardou a encontrar um galho velho para usar como bastão. Era melhor estar prevenido contra o que pudesse estar dormindo por ali.
     A indecisão de o que fazer levou um longo tempo. Estava com a cabeça doendo, os pensamentos confusos e com um mal estar dos diabos! Ele olhava em volta, mas a visão estava turva, impedindo que ele observasse mais detalhadamente os sinais à sua volta.
     Resolveu se afastar dali até que seus sentidos estivessem novamente em ordem, então voltou cuidadosamente por onde viera, até estar a uma distância segura daquelas construções arruinadas.
     Olhando em volta e para cima, descobriu uma arvore com galhas grossas e cheias de folhas, um ótimo esconderijo onde poderia dormir tranqüilamente por algumas horas sem precisar se preocupar com sua segurança. Afinal de contas, Ramsay estava na vila, e não poderia avisá-lo de qualquer perigo que surgisse.
     Teve algum trabalho para subir na arvore, seus braços e pernas se recusavam a trabalhar em conjunto, e ele se perguntou como conseguira correr tanto sem ter se esborrachado no chão. Medo! Era essa a resposta!
     Depois de subir um bom pedaço, descobriu uma pequena plataforma cercada de galhos mais finos, onde teria cobertura e segurança de não acordar em queda livre pouco antes de se estatelar no chão. Olhou em volta e marcou as posições mentalmente, para o caso de ter que agir depressa e sem tempo para pensar. Quando virou a cabeça pra baixo e olhou o caminho de volta, sorriu e pensou que se viesse a cair da cama, jamais acordaria em queda livre: acordaria ao se chocar com o primeiro galho, e sentiria uma infinidade de pancadas no decorrer de sua queda, até a pancada final, nas raízes da arvore, que se projetavam para fora da terra num emaranhado que partiria seus ossos em milhões de pedacinhos bem pequenos... estava realmente bem arranjado!
     Com estes pensamentos ele adormeceu.

* * *

     Acordou assustado, mas sem mover um só músculo, respirando lenta e profundamente. Já era noite, e ele se surpreendeu por ter dormido tanto, quando costumava dormir apenas algumas poucas horas por dia.
     Silêncio.
     Tudo estava quieto demais... nada de ruídos noturnos, nada de barulho de brisa nas folhas... tudo quieto como se o tempo tivesse parado.
     Um estalo.
     Iorek aguçou seus sentidos e esperou. Havia algo de errado.
     Virou a cabeça na direção do chão, vagaroso como um verme, e olhou.
     A visão foi aterradora!
     Uma horda de seres imundos se movia lentamente em direção oeste, tão silenciosos que Iorek chegou a pensar que eram fantasmas. As mãos estavam vazias e tocavam o solo, mas nos cintos estavam pendurados todos os tipos de armas, e nas costas eles traziam aljavas abarrotadas de flechas.
     A luz de Selune se derramava entre as folhas e iluminava suas faces horrendas, dezenas de bocas arreganhadas em sorrisos desumanos e centenas de olhos frios e decididos.
Uma invasão!
     Eles iam invadir e saquear a vila que o tratara tão mal. Parecia castigo dos deuses! Por Mieliki, eles teriam o que mereciam!
     Mas então ele se lembrou: Ramsay! Por todos os demônios! Ele seria aprisionado por aquelas criaturas nojentas!!! Não podia deixar que isso acontecesse! Ele ia dar um jeito de tirá-lo daqueles humanos nojentos, e isso seria bem fácil. Mas orcs? Eles eram muitos e com certeza levariam seu cavalo para lugares horrorosos e infestados de bestas sanguinárias. Ele não daria um tostão pela vida de seu amigo, se eles o capturassem. Teria que agir rápido!
     Esperou pacientemente que toda a horda passasse por ele, então desceu das galhas altas para o chão. Seria um massacre! Eles eram muitos!
Iorek correu como um louco, dando uma volta monumental para se desviar dos orcs e conseguir atingir a vila em outro ponto, de preferência do outro lado, onde estava o curral e com certeza o seu amigo. Fez tanto barulho que com certeza despertaria a curiosidade das bestas, e talvez pudesse atrasá-las um pouco.
     Atravessou ao norte o riacho que era mais ao sul a fronteira leste da vila. As roupas molhadas atrasaram um pouco sua corrida, mas ele se manteve firme, e atingiu o outro lado da vila em pouco tempo.
     Parado, o coração bombeando sangue nos seus ouvidos, Iorek olhou em direção às luzes da vila. Parecia que tudo estava calmo por lá... por pouco tempo, com certeza!
Estava decidindo sua tática quando ouviu um barulho que vinha de trás, de onde ele mesmo tinha vindo. O coração parou por um instante, o pânico de ser pego desprevenido fazendo com que suas mão começassem a suar. Voltou-se rapidamente e viu: três orcs com espadas curvas olhavam pra ele de trás de um aglomerado de troncos, as bocarras abertas e saliva escorrendo pelos cantos, brilhando sob a luz de Selune.
     -- Perfeito! Estou bem arranjado por aqui, como se já não tivesse um monte de problemas! - Iorek sabia exatamente o que ia acontecer: eles estariam os três sobre ele em segundos, então, não tinha tempo para pensar. E ainda estava desarmado! Onde diabos tinha deixado aquele bastão?
Rosnando e praguejando em sua língua ininteligível, os três investiram com tudo que tinham, já que o humano que combatiam não era pequeno: devia ser quase duas vezes mais alto que o maior deles.
     Iorek deu um salto para a esquerda, investindo contra o flanco do que estava mais perto. Segurou com força o braço com a mão direita, frustrando seu ataque, e puxou com força a criatura, que ficou na linha de fogo do que aparentemente era o líder.
Este, pego de surpresa pela rapidez de Iorek enquanto desferia um golpe furioso e sem técnica, amputou o braço de seu companheiro de uma só vez, fazendo o ser guinchar como um animal sendo morto a pauladas.
     Rapidamente, Iorek puxou com a mão direita a espada do braço decepado que segurava em sua mão, empunhando o mesmo com a mão esquerda. Agora eles estavam de igual para igual! Duas armas contra uma arma e um braço!
     -- Que belo porrete eu tenho agora - gracejou ele.
     O terceiro ser, que ficara para trás, cercou o flanco esquerdo de Iorek, tentando alcançar suas costas e atingi-lo pela retaguarda, mas foi frustrado por uma pancada desferida com o braço amputado de seu comparsa.
     Dando um salto para trás e um passo à esquerda, Iorek colocou-se diante do orc atordoado e desceu violentamente a espada em diagonal na direção de seu pescoço. A espada se cravou até quase a metade do peito da criatura, e recusou-se a sair.
Segurando o braço amputado pelo pulso com a mão direita, já que agora não tinha espada, Iorek olhou furiosamente para a ultima das criaturas. Sua respiração estava normal. Sem demonstrar muito interesse pelo adversário ainda de pé, soltou o braço amputado no chão e caminhou calmamente em sua direção, os olhos fixos e furiosos eram o único sinal de que ele não estava realmente tranqüilo.
     O Orc arreganhou mais os dentes com intenção de assustar seu oponente, mas tudo que conseguiu foi perder um tempo precioso, e em segundos Iorek já segurava seu braço direito pelo pulso, tão apertado que foi impossível para o ser não guinchar de dor. A pressão aumentou aos poucos obrigando-o a soltar sua arma.
     Os olhos se encontraram, homem e monstro face a face.
     Sem nenhuma demonstração de piedade, Iorek torceu o braço até fazer com que o monstro se ajoelhasse, e continuou torcendo até que sentiu o braço estalar com força. O grito da criatura foi muito mais baixo do que ele imaginou que seria. Abaixou-se e catou a espada. Levantou a mão e desferiu um único golpe.
     A criatura tombou sem vida.
     Virando as costas, Iorek se colocou a caminho da vila. Não tinha tempo a perder, seu amigo precisava de ajuda, e ele tinha que reaver seus pertences.

* * *

     Tudo estava absurdamente calmo. O silêncio era tão grande que oprimiu Iorek. O típico silêncio antes do terremoto.
     Somente os passos de uma sentinela que vagava sem rumo pela vila.
     Ele podia ver a sentinela rondando as casas mais ao sul, distante o suficiente para que Iorek não precisasse se preocupar muito em fazer silêncio.
     A uns vinte metros ficava o celeiro onde ele tinha colocado seu cavalo. Aparentemente ele estava desprotegido. E a casa de Udrow ficava bem próxima desse lugar. Iorek tinha a impressão de que encontraria suas coisas lá dentro.
     Fez um levantamento rápido da situação do celeiro, descobrindo que não ficava trancado, e que seu cavalo estava na mesma baia que ele havia colocado. Ele preparou sorrateiramente o terreno para libertá-lo, mas faria isso depois de invadir a casa de Udrow e reaver seus pertences.
     Como um gato na noite iluminada por Selune, foi em direção a casa dele e escondeu-se atrás de uns barris de água. Ele não teria trabalho de lutar. Os orcs o ajudariam nessa parte.
     -- Que ironia do destino, hein camarada? - sussurrou para si com um sorriso. Esperou pacientemente.
     E não teve que esperar muito.
     A sentinela nem soube exatamente como aconteceu. Urros foram ouvidos vindo de todas as direções e o barulho de coisas se quebrando e portas abrindo foram ouvidos por toda a vila. Em seguida Iorek ouviu o tilintar de metal contra metal quando os homens se puseram a combater a horda de invasores.
     Segundos depois a porta da casa de Udrow foi aberta e ele saiu de lá com sua pequena espada curta nas mãos e vestido de calções e sapatos. O peito nu fez com que Iorek sentisse pena dele. Não seria páreo para as flechas e espadas afiadas dos orcs.
     Quase imediatamente à saída dele da casa, a porta foi fechada por alguém lá dentro.
     -- Como previsto! - comentou Iorek.
     Levantando-se de seu posto de observação, ele caminhou lentamente em direção a uma janela e empurrou. Ela cedeu sem esforço e sem fazer barulho.
     -- Como previsto! - repetiu ele em meio a um sorriso.
     Saltou para dentro e deparou-se com um quarto vazio. A cama desfeita de casal mostrava que Udrow estivera ali até poucos instantes atrás com sua mulher, que agora deveria estar colocando algo para barrar a porta da frente e faria o mesmo com a porta dos fundos e as janelas.      Provavelmente o quarto seria o último lugar a ser lembrado, o que lhe daria tempo de revistá-lo em busca de suas coisas.
     Rapidamente mas com atenção ele deu uma busca no quarto, mas tudo o que achou foi seu cinto com as espadas. O troféu de Udrow, com certeza. Colocou novamente na cintura e sacou sua espada curta. Posicionou-se junto à porta e esperou.
     A porta foi aberta e uma jovem passou correndo por ele. Só notou que ele estava no quarto quando já fechava a janela. Teve um sobressalto e virou-se para ver o que havia aberto a janela daquela forma.
     Quando viu o estranho forasteiro em seu quarto a jovem ensaiou um grito, mas desistiu assim que viu a espada nas mãos dele.
     Iorek notou que a jovem usava o anel de casamento que dera a Gleena. E que no pescoço ela trazia a corrente com o símbolo de Mieliki que ele dera de presente a ela no dia em que completaram um ano de casados. Era o que ele mais buscava! As lembranças de sua amada!
     -- A fita! Onde está a fita? Vermelha? - perguntou ele.
     A mulher apavorada apontou na direção de um baú aos pés da cama. Perguntando-se o porque de não ter aberto este baú, com a mão livre ele abriu a tampa e viu logo em cima a fita de prender cabelos de Gleena. Pegou-a e colocou dentro da camisa.
     -- O anel e a corrente! Devolva! - disse esticando a mão na direção da pobre mulher.
     Ela se desfez dos objetos tão rápido quanto os tinha pegado para si.
     -- O arco? Onde está? - a mulher apontou debilmente para a porta, dando a entender que deveria estar em algum outro cômodo. - Vamos! Venha comigo! Vamos buscá-lo!
     Segurando o braço da mulher como toda a delicadeza, ele a conduziu até a sala e ela lhe mostrou que o arco estava na parede, pendurado ao lado da aljava abarrotada de flechas. Iorek pegou os dois e pendurou nos velhos lugares tão conhecidos.
     -- Fuja para a floresta! Aqui não é seguro! Eles são muitos e vocês, poucos! Será um massacre! - disse ele em tom de urgência. - Avise às outras que eles logo estarão em cima de vocês. Eu estou indo libertar meu cavalo e fugirei daqui como se o próprio Bane estivesse em meus calcanhares.
A mulher deixou escapar um soluço, e logo depois chorou como uma criança. Naquele estado ela lhe parecia tão frágil e indefesa que ele esteve a ponto de desistir de Ramsay para defendê-la dos orcs imundos. Mas o bom senso voltou e ele se lembrou de ter visto aquela mulher rindo dele enquanto seu marido o escorraçava da vila sem motivos.
     -- Pois bem... então feche a porta assim que eu sair e use isso - ele lhe entregou uma faca bem amolada que estava em seu cinto. - É para você, e não para os orcs. Se eles entrarem aqui eu a aconselho que tire sua própria vida. Nem quero imaginar do que eles seriam capazes de fazer a uma pessoa antes de matá-la... E dizendo isso ele deixou escapar uma lágrima. Ele também não sabia os detalhes do que eles deviam ter feito à sua Gleena antes de lhe tirar a vida.
     Abriu a porta e virou-se para olhar uma ultima vez para a jovem. Não era o que podia ser chamado de bonita, mas tinha seu charme. E os olhos molhados mirando a faca pendendo frouxa de suas mãos emprestaram a ela uma fragilidade tão inocente que Iorek duvidou que ela fosse capaz de tirar a própria vida para escapar da ira dos orcs.
     Dando as costas, ele se precipitou na direção do celeiro. O caminho estava livre. O combate se concentrava quase totalmente ao lado do riacho, deixando o campo livre para que Iorek libertasse seu tão querido amigo de aventuras. Ramsay pareceu satisfeito em vê-lo, e em poucos minutos já estava a cela sobre o lombo e todas as correias ajustadas. Montando seu cavalo, fez com que o mesmo abrisse com as patas traseiras a porta do celeiro. A força do coice atirou longe um orc desavisado que começava a puxar as correntes para abri-la.
     Quando finalmente pularam para a luz da lua, o pátio estava sendo invadido por alguns orcs que se desgarraram do grosso das tropas para encontrar tesouros passíveis de serem pilhados e não divididos. Ramsay colocou-se nas patas traseiras enquanto Iorek apontava seu arco contra um deles.
     A corda zuniu em seu ouvido e a seta voou certeira contra a cabeça da infeliz criatura. Outra vez e mais outra as setas partiram certeiras contra eles, derrubando outros dois antes mesmo deles se darem conta de que tinham companhia.
     Do outro lado da vila Iorek percebeu que vários telhados já pegavam fogo, sinal de que eles estavam ganhando terreno e já pilhavam as casas mais afastadas.
Aqui, longe da algazarra principal, ele se via cercado por mais ou menos uma dezena de orcs armados com machadinhas e espadas. Por sorte ainda estavam a alguma distância e antes que o primeiro deles estivesse à distância de um golpe ele já tinha posto metade fora de combate. Mas era melhor não cantar vitória antes do tempo. Daqui a pouco eles teriam reforços.
Sacou as espadas e atacou. Ramsay era treinado e estava acostumado a lidar com estas bestas, de modo que eles lutavam em equipe enquanto os orcs acertavam uns aos outros. Depois de colocar mais quatro fora de ação Iorek viu os outros que chegavam dar meia volta e debandar. Era uma vitória parcial, ele sabia, e o momento exato de cair fora dali.
     Já puxava as rédeas de Ramsay quando ouviu um grito de mulher. Por um momento ele achou que seu coração pararia. Com o canto do olho, ele viu a casa de Udrow em chamas, a porta escancarada e um grupo de orcs arrastando a jovem para fora, que já tivera sua roupa rasgada e tinha um dos seios à mostra. Não viu sinal da faca em suas mãos. Ela não seguira seu conselho, mas que diabos! Mulher idiota!
     Um súbito frio na espinha fez Iorek perder o equilíbrio e cair da sela. Imagens de sua Gleena sendo arrastada pela floresta, caindo e sendo duramente castigada por isso. Os olhos dela rasos d'água olhando pra as criaturas nojentas. O riso hediondo do orc imundo quando enfiou a sua espada, sádica e lentamente na coxa dela. A dor... Gleena pediu, implorou, mas não foi ouvida. E o orc continuou às gargalhadas seu brutal espetáculo de carnificina...
Iorek ergueu-se de um salto e subiu novamente em Ramsay. Olhou em direção a casa de Udrow e viu que o mesmo estava em frente a ela, dando cabo de um orc e entrando por entre as toras em chamas que já se desprendiam do teto. Dali a pouco saiu novamente, a face suja de cinzas e tossindo muito por causa da fumaça.
     -- Adriel! - gritou Udrow. - Onde você está, Adriel! - o inferno se fechava lentamente em torno dele. Vários orcs se atiraram contra ele, mas habilmente ele se desvencilhou das criaturas, e não parava de gritar: -- Adriel! Adriel!
Então ele viu Iorek. E Iorek apontou para a floresta ao leste.
     -- Por ali - gritou ele para o homem desesperado.
     Aterrorizado e aturdido, Udrow deu as costas a Iorek e viu a horda de orcs que se arrastava como uma onda negra e viscosa através da vila. Eram muitos, mais do que ele estaria disposto a enfrentar para tentar resgatar a jovem. Virou-se para o oeste e correu para fora da aldeia sem olhar para trás.
     Uma expressão de incredulidade tomou conta do rosto de Iorek. Ele nem ao menos tentara! Que covarde!
     Enlouquecido, bateu com os pés em Ramsay e este partiu na direção dos orcs com grande velocidade.
     Incontáveis flechas foram lançadas por Iorek, quase todas certeiras, enquanto ele abria caminho entre os orcs. A ajuda de Ramsay foi crucial, e sem ela ele jamais teria chegado ao outro lado da batalha. Era bem verdade que os orcs, percebendo que ele tentava apenas atravessar, terminavam por se colocar fora do caminho. O humano louco estava indo para o meio da floresta, exatamente por onde eles pretendiam voltar. Pois bem, eles se ocupariam dele depois de ter saqueado a vila inteira.


* * *


     Ramsay corria loucamente. Iorek já se certificara de que a mulher não estava em nenhum lugar da vila. Parecia tática dos orcs: capturar e retirar imediatamente todas as mulheres. Ele achava que era uma tática para deixar os homens em desespero. Pobres criaturas! Se vissem o que Udrow acabara de fazer teriam abolido de vez esta tática! Mas por outro lado, eles poderiam ter outros motivos para agir dessa forma... quem ia saber?
Selune agora ia alto, sua luz inundava a floresta com tonalidades de um azul fantasmagórico, mas era o suficiente para deixar ver a trilha caótica deixada pelos orcs em sua fuga e a mulher que tentava desesperadamente não seguir na mesma direção. Parecia mesmo a Iorek que havia uma estrada bem definida que o levaria diretamente e sem maiores complicações ao lugar que desejava ir.
     De repente algo passou zunindo por sua cabeça. Iorek puxou as rédeas de Ramsay para a direita e abandonou a trilha. Já estaria bastante próximo, com toda a certeza. Orcs são rápidos mas não se deve exagerar!
     Voou da sela de Ramsay e fez com que o cavalo seguisse seu próprio caminho. Quando o chamasse ele apareceria em poucos instantes. Era mesmo um cavalo digno de grandes generais!
Então fez silencio. Até a sua respiração era quase inaudível. Era hora de caçar!
     Não muito longe ele ouviu um lamento de mulher, e se pôs a caminho. Ia enfrentar os orcs no território que ele mais gostava: a floresta! Mas em contrapartida do jeitinho que eles mais gostavam: no escuro!
     Iorek pegou-se imaginando mentalmente quantos seriam. Não muitos, ele esperava. Sua Gleena fora capturada por mais ou menos uma dúzia daquelas criaturas nojentas. Agora ele estaria disposto a enfrentar um batalhão para salvar aquela mulher...
     -- Esta caçada é sua, meu amor - disse baixinho. - Perdoe-me por não poder ter feito a mesma coisa por você - as lágrimas rolavam por seu rosto, mas não tiraram a atenção do que estava fazendo. Contou quantas flechas sobravam: onze ao todo. Não podia se dar ao luxo de desperdiçá-las.
     Firmou uma delas na corda de seu arco e caminhou lentamente por entre as folhagens, sem fazer barulho, em direção aos lamentos. Começou a ouvir então as vozes guturais dos orcs que discutiam entre si.
     Prometendo a si mesmo que ia aprender aquela língua esdrúxula para saber o que tanto eles falavam em momentos como aquele, Iorek vislumbrou o brilho amarelado dos olhos pustulentos de um orc. Fez mira e disparou.
     A criatura não chegou a guinchar, mas colocou seus companheiros em alerta quando tombou sem vida. Olharam na direção em que se encontrava Iorek, dando-lhe uma oportunidade inigualável de fazer mais três disparos certeiros. Então as criaturas se espalharam, crentes que estavam sendo alvo de um pequeno exército. E foi então que cometeram o maior engano.
     Iorek partiu velozmente em direção ao bando que se espalhava, aproveitando-se da confusão para pegar pelas costas a maioria deles. Em poucos segundo já não tinha flechas, e segundo suas contas, deveria haver uns dez corpos de orcs espalhados pela floresta neste instante. Uma ele acertara num tronco de uma arvore morta, se seus ouvidos não o tivessem enganado.
Sacou então as espadas e foi até o lugar onde estava a jovem.
     -- Srta. Adriel? Está tudo bem? - perguntou ele da escuridão.
     -- Quem está aí? - respondeu a voz fraca e tremida da mulher em choque.
     -- Um amigo. Vim para ajudar. - e assobiou para Ramsay.
     Antes que este chegasse, porém, um pequeno grupo de cinco orcs saltou sobre ele com toda a fúria, mas ele já esperava por isso. Armado com suas duas espadas ele se atirou como um louco contra as criaturas que, diante de uma fúria sanguinária maior até do que as suas, se deixaram vencer tão facilmente a ponto de Iorek a se sentir ofendido.
     Ramsay já estava ali. Ele galgou as costas do companheiro e esticou a mão para Adriel, que debilmente esticou seu braço e deixou que Iorek puxasse o seu peso para a sela do cavalo. Então Iorek ordenou que Ramsay saísse dali.
     E foi o que Ramsay fez.

* * *

     O sol se levantava no horizonte quando Adriel abriu os olhos. Ali perto um grande cavalo negro pastava despreocupado. Uma pequena fogueira crepitava e lançava suas fagulhas no ar. Ao seu lado estavam algumas frutinhas silvestres avermelhadas e com um cheiro divino. Ela pegou um punhado e comeu avidamente.
     Levantou-se e tentou colocar ordem nos cabelos.
Descendo a encosta por trás de umas arvores, Iorek sorriu divertido ao notar o desconcerto da mulher ao vê-lo.
     -- Bom dia! Vejo que nem mesmo o perigo de ser aprisionada por orcs conseguiu tirar seu apetite! - zombou ele. - Eu daria qualquer coisa por um daqueles grandes espelhos de metal. Você deveria ver sua cara! - e deu uma risada gostosa.
     -- Por que... O que você...
     -- Complete as frases, já que definitivamente eu não nasci com aptidão para adivinhar pensamentos.
     Adriel começou a soluçar e lágrimas escorreram por sua face.
     -- Mas porque? Porque você me ajudou? Depois de tudo o que fizemos a você? - ela agora chorava sem nenhum pingo de vergonha.
     -- Porque? Hehehe... porque de alguma forma, eu devia isso a alguém...
     -- Mas quem? A quem você devia a minha vida?
     -- Não era sua vida! - Iorek sobressaltou-se, assustando a jovem. Virou as costas para esconder as próprias lágrimas. - Desculpa... não é com você. Eu devia isso à outra pessoa... mas não pude fazer nada...
     -- Que pessoa? - Adriel erguera o rosto para olhar para seu salvador, e agora se aproximava lentamente dele, o braço estendido e a mão aberta. Tocou suas costas.
     -- Minha esposa - disse, e caiu num choro copioso e dolorido. Arriou no chão e cobriu o rosto com as mãos. - Eu devia isso a ela...
     -- Desculpe... não estou entendendo nada - Adriel se encontrava de pé, atrás de Iorek, as mãos em seus cabelos.
     -- Foi tudo culpa minha...
     -- Conte-me o que houve - pediu Adriel.
     -- Eu a levei para uma de minhas caçadas, e enquanto eu estava na floresta ela foi aprisionada      por orcs... - a voz dele parecia um fiapo da voz que lhe era costumeira. - O Ramsay aí era um potro quando eu o salvei de uns orcs que o estavam perseguindo. Eu matei alguns deles.
     -- E o que tem isso a ver com sua es... ah, meu deus! - Adriel levou as mãos ao rosto a cobriu a boca. Teriam os orcs aprisionado a esposa dele num ato de vingança? - E você não sabe onde encontrá-la? É isso?
     -- Eu a encontrei sim... eles a mataram e a separaram em vários pedaços - neste ponto do relato Iorek tossiu convulsivamente e colocou seu café da manhã de frutas silvestres para fora.
     -- Por Tymora! Que sorte horrível! - Adriel olhou para Iorek e chorou. Chorou pela sorte de sua esposa, pela sina dele em levar dentro de si a culpa da morte de sua amada, chorou de vergonha pelo modo como o havia tratado junto com todos os vilões.
     -- Eu juntei todos os pedaços dela - balbuciou ele, o rosto lavado em lágrimas. Ele agitava as mãos em frente ao rosto como se apalpasse alguma coisa. - Eu juntei lenha, muita lenha... e coloquei os pedaços dela em cima...
     Adriel cobriu a boca com as mãos, as lágrimas rolavam sem parar. O que era aquele aspecto sujo do homem quando entrou na vila? Sofrimento! Ele viera em busca de esquecimento e encontrara a traição! Ela estava se sentindo o pior ser do mundo e implorava para estar novamente nas mãos dos orcs, para sofrer a mais horrível das mortes.
     -- Eles não levaram nenhum bem dela... esse anel que eu lhe dei como prova de meu amor, no dia de nosso casamento - e levantou o anel debilmente em frente aos olhos. - E essa corrente com o símbolo da minha deusa, Mieliki, quando completamos um ano de casados - Iorek mostrou a corrente, seus olhos iam da corrente para o rosto de Adriel. - A fita que prendia seu lindo cabelo naquele dia... e tirou a fita de dentro da camisa. Foi então que Adriel entendeu as manchas escuras que se espalhavam pela fita: era o sangue da esposa de Iorek!
     -- Ah, meu deus! Eu lamento muito! Lamento muito... - era a pior coisa que poderia ter acontecido na vida de Adriel. Ela usara os bens mais preciosos do homem que terminara por salvá-la, bens estes que pertenceram a sua mulher que fora morta por orcs, assim como ela teria morrido se não fosse a intervenção dele. E estes bens haviam sido roubados dele por Udrow, seu marido...
     -- Eu juntei tudo e pus fogo... mas não consegui ficar para ver... - soluçou ele. - Desde este dia eu venho vagando pelas terras, sem destino, sem companhia... eu só queria um pouco de companhia por uma noite... só isso...
     Adriel calou-se. Não conseguiria dizer mais uma palavra que fosse.

* * *

     Enquanto se aproximavam da vila, podiam ver o tamanho do estrago que tinha sido feito pelos orcs. Adriel ia em silêncio na garupa de Ramsay. Silêncio este que Iorek não se esforçou em quebrar.
     Alguns vilões andavam desolados por entre os destroços, tentando encontrar algo que não tivesse sido pilhado ou quebrado.
     Quando notaram a aproximação do forasteiro em seu cavalo e Adriel na garupa, correram para avisar Udrow.
     Iorek ajudou-a a descer e com um gracejo passou a mão dela para a mão de Udrow. Ela manteve os olhos baixos o tempo todo. Udrow também não foi capaz de dizer nenhuma palavra.
     Depois que Adriel se afastou, Iorek desceu do cavalo e passou o braço por cima dos ombros de Udrow, começando a caminhar lentamente em direção a casa destruída deste.
     -- Eu não contei a ela que você fugiu, mesmo sabendo que ela corria perigo - disse ele com a voz seca. - Se eu fosse você, e você a amasse, deixaria que ela pensasse que você estava defendendo a aldeia. Tenho certeza de que ninguém além de mim viu o que aconteceu exatamente, portanto, fique sossegado. Não sou homem de guardar rancores, mas uma coisa eu jamais vou perdoar: que você repita este ato covarde de abandonar sua esposa novamente.
     Udrow apenas olhava para ele, com uma expressão de incredulidade.
     -- Ela é seu bem mais precioso... eu poderia dizer até que é mais preciosa que sua própria vida - e dizendo isso, acenou para Adriel que observava ao longe e voltou para o lado de Ramsay.
     -- Vamos embora companheiro, que a estrada é longa - e com um sorriso divertido acrescentou:      -- Mesmo não sabendo para que raios de lugar maluco ela vai nos levar agora!

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