
Por Louis Bear
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Os
Últimos Dias de Glória - Contos
Um passeio em Cormanthor
03 de Alturiak de 1361
Hutail, casa de Iorek e Glenna.
Norte de Cormyr
Os
últimos ventos gélidos do inverno sopravam naquela
noite como se para levar para longe tudo o que pudesse ser carregado,
enchendo a noite de lamentos fantasmagóricos e o ranger de
arvores que se curvavam mais um pouco contra sua fúria implacável.
Deitado
em sua cama, Iorek Jester Bergson abraçava o corpo pequenino
de sua esposa. As horas escoavam lentamente na escuridão
que era quebrada vez ou outra pelo lampejo mortiço de um
relâmpago distante.
Glenna
Ilka Lusbel, sua muito estimada esposa, soluçava baixinho,
imaginando-o a dormir. Mas Iorek estava acordado e sentia cada lágrima
que molhava sua camisa, lágrimas que feriam seu peito tão
profundamente quanto uma punhalada. Cada suspiro dela era como um
golpe em seu estomago, tirando-lhe o ar dos pulmões...
Há oito meses atrás a mãe de Glenna, Yule Lusbel,
morrera de alguma doença que Iorek não conhecia. Primeiro
definhara e pouco a pouco se tornara tão fraca que mal conseguia
abrir a boca para comer... E como eles moravam a poucos minutos
de caminhada da casa de Yule, estavam quase sempre ao lado dela,
vendo-a fenecer aos poucos, sem poder fazer nada.
E
desde então a sua pequena tinha se entregado a um sofrer
tão intenso que a impedia de adormecer tranqüilamente
todas as noites e, é claro, a Iorek também, que não
sabia maneiras de fazê-la esquecer sua dor.
Fingindo
acordar, ele moveu-se um pouquinho, para ajeitar o corpo, causando
um sobressalto em Glenna. Sem pressa, ele acariciou sua face e enxugou
uma lágrima, com tanta ternura no movimento que apenas causou
uma nova onda de soluços nela. Ele a abraçou com força.
--
Meu amor! - ele falou, num sussurro. - Deixe que sua mãe
fique em paz ao lado de Mielikki. Se você chorar assim todas
as noites ela não estará bem, lá na floresta
encantada da Deusa...
--
Ai, Iorek... - ela soluçou, como se a dor fosse mais física
do que realmente o era. - Ai... Eu sinto a falta dela, Iorek, sinto
muita falta dela... E agora que meu pai veio e levou o meu irmãozinho...
Todos os meus parentes se foram...
--
Glenna, minha pequena, Sirius está bem, você sabe disso!
Seu pai o levou para que ele tivesse um treinamento militar, porque
tinha sido este o caminho que ele mesmo havia seguido, e no qual
ele acredita com todas as forças.
--
Eu sei disso... Mas ele é tão novinho, o meu garotinho...
- E voltou a chorar com força redobrada.
O
velho Stanne, pai de Glenna e Sirius, havia chegado perto do aniversário
de Iorek, no mês de Nightall, e levara o garoto para longe,
em direção a Águas Profundas. Iorek conseguira
com muito esforço que ele lhe dissesse o nome do mestre a
quem ia entregar o garoto para que fosse criado e treinado: Alisander
Donagh. Tinha feito isso para o caso de ter que ir procurá-lo
algum dia, ou se Glenna resolvesse ir visitar o irmão naquela
cidade distante e que tantas estórias fantásticas
trazia atreladas ao seu nome.
Pouco
a pouco o choro foi minguando. Ele acariciava seus cabelos castanhos
claros com a ponta dos dedos, pousando vez por outra um beijo delicado
em sua testa e em seus olhos.
Ficou assim por vários minutos, até sentir que ela
havia adormecido. Esperou mais alguns minutos, para ter certeza
de que ela não tentava enganá-lo, então retirou
cuidadosamente o braço que envolvia seu corpo pequeno e frágil.
Puxou a grossa manta até cobri-la por inteiro e juntou o
restante da mesma em volta do seu corpo pequenino, a fim de criar
um ninho aconchegante.
De pé, ao lado da cama, ele ficou por outros longos minutos
observando a respiração lenta e cadenciada da mulher
dormindo. Era a sua vez de chorar um pouco, e ele o fez, sem medo
de parecer tolo. Aquela mulher ali deitada era a coisa mais perfeita
que havia entrado em sua vida. Ele a amava com todas as forças
e, vendo seu sofrimento, sofria junto com ela.
Silencioso,
vestiu uma roupa e saiu pela porta dos fundos da casa para a noite
fria. Caminhou em silêncio até o pequeno celeiro, lutando
um pouco contra a resistência do vento e abriu a porta com
cuidado, para não fazer muito barulho.
Lá
dentro, tudo era escuridão, só quebrada pelos relâmpagos
que riscavam o céu no horizonte. O odor de forragem começando
a mofar e excremento de animais invadiu suas narinas. O ar frio
lá de fora tornava-se morno com a respiração
dos cavalos e outros animais que ali se encontravam.
Tateando, chegou próximo a Ramsay, seu cavalo, e fez-lhe
algum carinho na fronte.
Sempre às cegas, arreou e selou o animal. O pobre coitado
não se opôs, era bem treinado para isso. Mas se pudesse
ser consultado teria preferido ficar ali, no celeiro, que era um
lugar quente e protegido.
Iorek
subiu para o dorso do animal bem devagar. E puxou as rédeas
para que Ramsay se dirigisse à porta.
* * *
No
horizonte a aurora já se anunciava.
Com
o corpo tencionado qual corda de arco prestes a disparar, Iorek
ia ao lombo de Ramsay, olhos atentos, espreitando os recantos mais
distantes que a densa floresta ao redor permitia.
Aquela era uma floresta particularmente esquisita. Mesmo no auge
do inverno, era como se a primavera estivesse chegando ao fim de
seus dias. Era um lugar que Iorek relutava em entrar, pois bem o
sabia, era lar das coisas mais esquisitas.
Mas
aquela, com certeza era uma ocasião especial. Ele precisava
se esforçar e encontrar alguma tulipa perdida no meio daquele
verde opressivo e inquietante. E ele o faria, nem que tivesse que
revirar cada centímetro de terra dali até oVale das
Sombras... E caso não encontrasse nenhuma, bateria à
porta do tal sábio que morava nesta vila tão distante
(a quem chamavam Elminster, e do qual já ouvira contar algumas
estórias fantásticas) e pediria que ele lhe fizesse
uma utilizando-se de seus sortilégios...
Um
sorriso brincou nos lábios de Iorek, ante este pensamento.
Provavelmente,
se é que este tão estranho senhor existia realmente,
ele o transformaria na tal flor, e o cavalo que se virasse para
entregá-la a quem quer que Iorek fosse presentear.
O
sorriso morreu aos poucos em seu rosto e deu lugar ao semblante
carregado de quem estava preocupado com a coisinha pequena e desprotegida
que dormia a alguns quilômetros dali. Ele precisava ser rápido,
sem dizer que precisaria também de uma dose gigantesca da
sorte de Tymora para que encontrasse a tal flor sem muita demora.
Ia
espreitando de dentro da manta que enrolava seu corpo para protegê-lo
do frio, quando sentiu que sua montaria se inquietava. Era estranho
pra ele ver seu companheiro inquieto daquela forma. Lentamente,
por debaixo da manta, ele sacou sua espada e aguçou os sentidos.
Ramsay deu muitos passos de maneira tensa, mas nada em volta parecia
trazer mais perigo do que um esquilo assassino ou um passarinho
suicida. Assim ia pensando Iorek, quando avistou ao longe um ponto
bruxuleante de um vermelho vivo, enchendo de esperanças o
seu coração.
Aproximou-se de maneira descuidada, a única coisa que lhe
importava era achar logo uma tulipa e voltar pra casa, para sua
Glenna.
Um
sorriso iluminou seu rosto.
Viva,
e tão bela que fez seu corpo se aquecer de paixão,
a tulipa se projetava de seu caule, perfeita em suas formas e solitária
como um coração abandonado, no meio da floresta.
Desceu
da sela e aproximou-se, enfeitiçado.
Sua
mão já ia a poucos centímetros dela quando
ele foi surpreendido por um ser que se movia rapidamente, saído
de trás do tronco de uma arvore próxima, e caminhando
em sua direção.
Iorek levantou os olhos e vislumbrou a graça do ser que se
aproximava, com seus cabelos dourados e pele pálida, os olhos
brilhantes e sérios encarando-o a reprová-lo, mão
no cabo da espada e atitude hostil.
A
cena, não fosse trágica, seria cômica: Iorek,
braço esticado para a flor, rosto virado para o ser, imóvel,
com cara de espanto. A despeito do risco que corria, sorriu. E o
ser não suportou a hilaridade da situação,
sorriu de volta por um átimo, e falou, em bom tom:
--
Afasta a tua mão imunda do que não tens permissão
para colher, humano.
Recolhendo
rapidamente o braço, Iorek voltou a raciocinar rapidamente.
Ele deveria estar sendo observado já há algum tempo,
motivo pelo qual Ramsay se mostrava inquieto. E aquele ser que o
observava, agora lhe falava, e com certeza era um dos elfos da floresta,
com suas orelhas pontudas e ágil como uma pantera. Era melhor
não se mostrar hostil, porque com toda a certeza ele não
estava só e ademais ele estava invadindo os domínios
do elfo. Que direito tinha ele de se apossar de algo na casa dos
outros?
--
Perdão, homem fada, não tinha a intenção
de ofendê-lo com minhas ações. - Parecia a Iorek
a coisa certa a dizer, e ele regozijou-se por notar que estava certo.
--
Não ofendes a mim, mas a Corellon, que colocou aí
esta flor para embelezar a casa dos elfos. Porque não podes
apenas admirar a beleza, sem destruí-la, humano? - Vendo
a atitude pacífica do homem, o elfo afrouxou a mão
no cabo da espada e assumiu uma postura menos ofensiva. - Os homens
teimam sempre em destruir o que está pela frente... Só
irão parar quando tiverem destruído todas as obras
de Corellon?
--
Perdão novamente, homem fada. Eu não tinha más
intenções em meu coração.
--
Destruir a vida não é má intenção?
--
Sim, é uma má intenção, mas eu não
estaria fazendo isso em vão.
--
Não? E em nome de que você imagina que pode destruir
uma vida?
--
Uau... Pensando desta forma começo a me sentir um monstro...
--
E monstros fazem monstruosidades, tal qual a que você estava
prestes a fazer, não fosse eu a impedi-lo.
--
Juro-te, elfo: não tinha intenções nefastas
em meu peito. Colhia esta flor para presenteá-la a minha
esposa, como forma de tentar alegrá-la, porque anda triste
com a partida de sua mãe para o éter e de seu irmão
para longe...
--
E alegra-la-ia ver uma flor morta, humano?
--
Bem... - E coçando a cabeça de modo displicente, continuou
Iorek: -- Ela adora tulipas, e sempre ficou muito feliz todas as
vezes que eu trouxe uma de presente para ela. Como passou a noite
a chorar, e só dormiu a pouco, decidi fazer-lhe uma surpresa,
buscando pra ela uma prenda que a deixaria feliz, ao menos ao despertar...
--
Ainda assim eu não concordo com suas ações,
mas diante de (e a despeito da monstruosidade da ação)
atitude tão nobre, dar-te-ei a oportunidade de se explicar
com outro alguém, de sabedoria infinitamente superior à
minha, que decidirá por sua iniqüidade.
--
Se prometeres que não levará muito tempo, vou sim...
Mas ficaria feliz de retornar à minha casa antes de minha
esposa despertar.
--
Vocês humanos, de vida tão curta, sempre com pressa.
- O elfo pareceu divertido com a situação, mas manteve
da melhor forma a sua postura. - Quem decidirá pelo tempo
que irá durar tudo isso não serei eu, e vamos logo,
já que estás tão aflito em voltar logo para
casa.
Assim dizendo, o elfo se colocou a caminhar depressa, e foi acompanhado
por Iorek, montado em seu cavalo.
Caminharam
por pouco tempo. E durante o caminho o elfo acrescentou:
--
Conhecerás Medras Ilhiar, meu pai e regente da casa dos Ilhiar.
Ele não está muito longe, agora.
Iorek
se perguntava se conheceria uma morada dos elfos, coisa que jamais
imaginara poder acontecer, já que os elfos eram tão
reservados e evitavam visitas desnecessárias em seus domínios.
Mas logo ele compreendeu que não seria desta vez que veria
as belezas daquela raça.
Sentado em um velho tronco caído e meio apodrecido, um outro
elfo com aparência mais velha observava os movimentos dos
três seres que se aproximavam: o elfo, Iorek e sua montaria.
Com
um sorriso nos lábios ele os recebeu, um olhar curioso direcionado
a Iorek.
--
Meu senhor - iniciou o elfo recém-chegado. - Trago para a
tua apreciação um caso que não ouso julgar
- E assim falando, relatou de maneira bem elaborada (e muitas vezes
floreada, para espanto de Iorek) toda a estória que havia
ouvido há pouco. Assim que terminou a narrativa, fez uma
reverência ao alto elfo e tocou gentilmente o ombro de Iorek,
retirando-se da presença de ambos no momento seguinte.
Por
longos minutos que ao humano pareceram séculos, o sábio
contemplou a paisagem ao redor e por vezes sem conta pousou um olhar
inquisidor sobre o causador de tamanha balburdia em seus domínios.
E quando Iorek já achava que esta era uma espera vã,
a voz do elfo foi ouvida pela primeira vez. Uma voz calma, mas que
demonstrava toda a autoridade do numero de anos que aquele ser já
deveria ter visto passar:
--
Está claro como a luz do Sol para mim, que os jovens de meu
povo estão cada vez mais se deixando contagiar por paixões
frívolas, que outrora eram atípicas à nossa
raça. Uma questão tão simples de ser resolvida
jamais teria passado às mãos de outro, mas por alguma
razão que desconheço, meu jovem filho deu credibilidade
à sua estória.
Iorek sentiu um vazio no coração e já via a
si mesmo voltando pra casa sem a flor quando seus pensamentos foram
interrompidos.
--
Entretanto, me parece que está enfermidade é algo
que se espalha pelo vento, e mesmo achando ser esta uma atitude
monstruosa, sinto me um tanto desconfortável em dizer-lhe
que parta sem sua prenda.
Um
sorriso brincou nos lábios de Iorek.
--
Meus olhos vêem muitas coisas. Como se diz entre os elfos:
Se tens olhar aguçado, vereis tudo em movimento. - E ergueu-se
de onde estivera sentado. - Porem, vou abdicar de meu olhar e colocar
nas suas mãos a responsabilidade de seus próprios
atos.
O
elfo sorriu e começou a caminhar, indicando a Iorek que este
deveria acompanhá-lo.
--
Existe aqui em minha floresta um lugar onde a verdade é a
única que pode adentrar. Um lugar encantado por meus ancestrais
com o intuito de conhecer a verdadeira natureza dos seres. - E
olhou para o humano de forma inquiridora: -- Se o que você
diz é a pura verdade, não tens o que temer. Se o amor
que sentes por sua esposa é verdadeiro, nada irá acontecer-te,
mas aviso-o: Se for mentira o que reina em teu coração,
não sigas adiante. Dê meia volta e retorne para sua
casa. Dar-te-ei esta ultima chance.
Iorek
olhou para o elfo, erguendo o sobrolho sem entender direito o que
estava acontecendo.
--
Todos os que entram neste lugar sagrado carregando a mentira em
seus corações são transformados imediatamente
em pedra. Você poderá comprovar de duas formas: Apenas
observando os que já foram petrificados, ou tendo a oportunidade
de se tornar um deles ou não, de acordo com o que você
carrega dentro do peito.
--
Qualquer mentira me transformará em pedra? - Perguntou Iorek
preocupado.
--
Não. Apenas se você estiver mentindo sobre o motivo
de querer destruir a beleza que Corellon criou.
Iorek
sorriu.
--Ufs!!!
Quase que eu dou meia volta e corro com meus próprios pés
até em casa! - E animou-se para continuar sua jornada ao
lado do elfo. - Quem é que nunca contou uma mentirinha à
toa? - E fez brotar um leve sorriso na face do elfo.
Haviam
andado pouco, apenas alguns minutos, quando alcançaram uma
clareira ampla cercada de arbustos floridos. De um dos lados era
possível ver, bem acima das demais estatuas, a face acinzentada
de um elfo que o seu guia lhe apresentou como sendo Corellon, pai
de todos os elfos. O resto destas eram elfos em sua maioria, mas
aqui e ali era possível descobrir humanos, anões e
halflings, todos dispostos de forma que pareciam caminhar em direção
a estatua de Corellon.
--
Vê? - iniciou Medras. - Todos estes que aí estão,
um dia estiveram do lado de cá. Entraram no círculo
para provar sua honestidade e falharam...
Iorek observou as estatuas. Todas, aos seus olhos, pareceram bem
"reais" e seu coração ficou miudinho, cheio
de temor. Se ele virasse pedra, jamais voltaria a ver sua amada.
E tentou novamente entender a essência da prova:
--
Quer dizer então que se a minha busca for verdadeira, e eu
não trouxer mentiras em meu coração com relação
apenas a esta busca, eu não me transformo em pedra? De verdade?
- Argüiu, a voz soando um pouco esganiçada para um homem
daquele tamanho.
--
Isso mesmo, humano. Se você tiver sido honesto e sua cruzada
for por um ato realmente nobre, você irá até
Corellon e irá pedir ao próprio, em alto e bom tom.
- E completou, reverente: -- Eu ficarei bem aqui, esperando para
ver se teremos mais uma estátua embelezando nosso círculo,
ou menos uma flor embelezando nossa casa.
Dito
isso, calou-se e assumiu uma postura quase militar. Agora era com
Iorek.
Ele
respirou fundo e pensou em sua pequena Glenna, deitada em sua cama,
dormindo o sono dos justos, sem suspeitar de nada que estava acontecendo.
Deu um passo vacilante em direção às estatuas
e nada aconteceu. Depois de dar o primeiro passo os outros foram
se tornando mais fáceis, e ele começou a observar
as faces dos homens e elfos que pereceram em suas buscas. Todos
traziam uma expressão confiante, e olhavam em direção
a Corellon. Ao menos eles não pareciam ter sentido dores
horríveis quando seus corpos começaram a se transformar
em pedra.
Não
demorou quase nada e ele estava em frente à grande estatua.
Regozijou-o a idéia de que ao menos ele era o que tinha chegado
mais próximo de Corellon, pai dos elfos. E foi fazendo como
lhe havia indicado o seu guia:
--
É... - Coçou a cabeça, imaginando qual era
a melhor forma de pedir um favor a um deus. - Puxa vida, senhor
Corellon, eu estou aqui arriscando minha vida apenas pra te pedir
que me autorize a colher uma Tulipa em sua floresta, pra que eu
leve de presente à minha esposa que chorou a noite toda a
perda de seus entes queridos. - Fez uma pausa e pensou que deveria
estar parecendo um tolo diante de um deus.
--
Bem, se não for pedir demais, eu agradeceria do fundo do
coração, certo? - E sorriu para a estatua. Era um
sorriso confiante e ele fez uma mesura exagerada, virando as costas
para ela, confiante de que havia conseguido sua flor.
Voltou
então para junto do elfo que o aguardava sem mover um só
músculo.
--
Então, já posso colher minha flor e correr pra casa,
antes que minha esposa desperte? - Perguntou
ele, exultante.
--
Lamento, jovem humano, mas não será possível.
- Desculpou-se o sábio, e vendo a cara de espanto de Iorek,
tratou de explicar o motivo da recusa: -- Você ouviu a voz
de Corellon autorizando sua colheita?
Iorek
teve uma sensação de que tinha se portado como um
bobo. Ele tinha ficado tão assustado e com vontade de sair
de junto da estatua que nem esperara o bendito deus dar sua resposta.
--
Você é um afortunado, homem! Corellon o devolveu ileso
para que retornasse à sua casa e vivesse ao lado de sua esposa.
Não lhe permitiu macular a casa dos elfos, mas lhe deu o
dom da vida! Corra para casa e beije sua esposa!
Diante
desta perspectiva, Iorek pulou para o lombo de Ramsay e virou-se
em direção a sua casa. Agradeceu ao elfo e já
ia dando a ordem de que Ramsay necessitava para se colocar em movimento,
quando ouviu a voz de seu guia:
--
Traga sua esposa aqui! Adoraria conhecer uma mulher merecedora de
tamanho sacrifício! Deve ser uma criatura divina! - E fez
um gesto de despedida para Iorek, que bateu com as mãos no
flanco de seu cavalo e partiu, acenando brevemente para o venerável
elfo, não pela última vez. Ele traria Glenna para
esta floresta ainda naquela semana, sem falta!
Fez
o caminho de volta a todo vapor, e ia pensando em tudo o que acontecera
naquela manhã. Ele não conseguira a flor, mas estava
vivo e moveria céus e terras para trazer a felicidade novamente
para o coração de sua amada. Nem teve tempo de ver
que o primeiro elfo que encontrara na floresta estava agora se juntando
a Medras.
* * *
--
Meu pai?
--
Sim, filho meu?
--
Vejo um sorriso em seu rosto, o que faz o senhor se sentir tão
feliz nessa manhã?
--
O amor deste jovem pela sua esposa, é isso que me faz sorrir.
E acreditar que esta raça talvez tenha jeito, se existirem
pessoas com sentimentos tão nobres quanto o que fazia este
homem caminhar, neste glorioso dia de Corellon.
--
Vejo que decidiu permitir que ele colhesse a flor que tanto queria.
--
Não, eu não deixei!
O
filho olhou para o pai, não entendendo muito bem o que estava
acontecendo.
--
Não me olhe com esta cara, criança!
--
Como não olhar? Se agora mesmo o senhor disse estar sorrindo
devido ao amor que este humano sentia pela esposa? - E sem deixar
espaço para o pai se defender, emendou:
-- Posso saber o motivo de o senhor ter trazido o humano para dentro
de nosso lar? Foi apenas para mostrar-lhe nossas estatuas, presente
de todas as raças amigas? E porque deixou que ele caminhasse
até Corellon sozinho, quando você sempre encontra um
pretexto de estar frente a estatua para pedir suas bênçãos?
O
pai sorriu, as maçãs do rosto tornando-se rubras,
então explicou, divertido:
--
Sabe, filho, eu inventei uma certa estória de que este lugar
era mágico, e que uma pessoa com intenções
nefastas no coração seria transformado em pedra, caso
entrasse no círculo.
Nessa
altura da narrativa, o filho sorriu.
--
Vim com ele até aqui, mas então, como era eu o mentiroso,
temi que Corellon petrificasse a mim, ao entrar no círculo,
como premio por mentir em seu nome. - E deu uma risada hesitante.
--
Entendo, meu pai - emendou rindo o outro elfo. - Mas porque, mesmo
depois de uma prova de tamanha coragem, você não permitiu
que ele levasse sua flor?
--
Porque, enquanto ele ia cegamente acreditando que aquele homem de
quase três metros de altura e aquele anão de dois metros
um dia teriam sido seres vivos, eu secretamente entrei em contato
com sua mente, descobri onde morava e pedi um favor a uns velhos
amigos que vivem lá pros lados de Hutail.
--
E o que seria este tal favor?
- -
Vejo que a pressa da raça humana realmente andou contagiando
meus jovens filhos - brincou ele. - Vamos, vamos arranjar umas frutas
e fazer nosso desjejum. No caminho irei contando a idéia
que tive.
E
entraram na floresta.
* * *
Iorek
entrou em casa com um sorriso nos lábios. Estava a ponto
de explodir de tanto contentamento. Foi até a cama e ficou
observando por um momento sua pequena dormir. Depois saiu de mansinho
e tomou um banho.
Voltou
para perto da cama carregando uma bandeja improvisada com uma tábua,
onde havia colocado todas as coisas que sua Glenna gostava de comer
no desjejum.
O
dia já ia adiantado, mas parecia noite alta, dentro do quarto.
Ele foi até a janela e abriu de mansinho, olhando pra fora
e certificando-se de que tudo estava em ordem.
Chegou
novamente junto a Glenna no exato instante em que ela moveu o corpo
debaixo das cobertas. Sentou-se ao lado dela, segurando a bandeja.
--
Hora de despertar, meu amor, que o sol já raiou há
tempos!
Glenna
olhou a bandeja repleta e sorriu. Recostou-se na cama e, sem deixar
de sorrir, tomou um gole de leite morno e comeu um naco de pão.
Colocou gentilmente um pedaço de queijo fresco na boca de
Iorek e riu enquanto ele fazia uma careta de contentamento.
--
Me perdoa, Iorek... -- Ia dizendo, mas Iorek a fez calar com um
beijo. E assim eles terminaram a refeição num silêncio
divertido, já que Iorek não parava de fazer das suas,
e arrancava risos de sua esposa a cada instante.
Quando
a bandeja improvisada estava completamente vazia, Iorek depositou
a mesma ao lado da cama e recostou-se nas almofadas, trazendo Glenna
para o calor de seu abraço e beijando-lhe a boca com paixão.
Ficaram na cama ainda por longo tempo, e Iorek e Glenna amaram-se,
Glenna com suas tristezas e Iorek com seus segredos momentaneamente
esquecidos. E depois de haver saciado seus corpos, Iorek levantou-se
e ergueu sua esposa, envolvendo os dois numa manta quente.
--
O que você está fazendo Iorek? -Perguntou Glenna, rindo,
enquanto ambos tentavam manter um certo equilíbrio debaixo
da manta.
--
Tenho uma surpresa pra você - disse ele, tapando seus olhos
com a mão livre e caminhando desajeitado ao lado dela até
chegar junto à janela. - Isto é um presente meu e
de um certo amigo para você, minha amada. Espero que goste.
Quando
a visão se acostumou à claridade do dia, Glenna prendeu
a respiração e deixou escapar uma lágrima.
Diante da janela um jardim florescera, da noite para o dia, magnífico.
Flores de todos os tipos emprestavam seu colorido a um verde viçoso
do gramado qual tapete verde. E o perfume que se erguia no ar era
tão fabuloso que deixaria um perfumista extasiado. E em meio
a toda esta beleza, várias tulipas de cores e tamanhos variados
davam o toque final ao espetáculo.
Virando-se, e sem pedir explicações, Glenna empurrou
Iorek de volta para a cama. Haveria tempo de sobra para saber o
que acontecera e cuidar de seu novo jardim. Agora era o momento
de agradecer o presente.
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