
Por Louis Bear
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Os
Últimos Dias de Glória - Contos
A mão do Carrasco
Malthus Ny'Marro
sentou-se pesadamente no chão lamacento, a poucos passos
do corpo já sem vida da última criatura. Um vapor
fétido se desprendia do chão e subia em espirais,
carregando o cheiro de sangue. Tudo estava no mais completo silêncio.
Fora uma batalha acirrada. Sem sombra de dúvidas ele chamaria
de louco qualquer um que se atirasse sozinho contra um bando inteiro
daquelas coisas asquerosas... Se lhe perguntassem não saberia
explicar o que realmente acontecera.
Lembrava-se
apenas de vê-los descendo as encostas que margeavam a estreita
estrada de barro urrando como bestas selvagens e atacar um pequeno
grupo de pessoas, provavelmente fazendeiros, uns cento e vinte metros
adiante, descendo a estrada. Ele disparou naquela direção
a passos largos e tudo se tingiu de vermelho diante de seus olhos.
Logo em seguida (era tudo o que podia se lembrar) o cansaço
trouxe de volta a realidade e lá estava ele, sentado no chão
imundo.
Olhando
em volta pôde constatar que apenas um dos cadáveres
não tinha as feições assustadoras nem a pele
áspera e escura das criaturas. Pelo menos, quase todos os
homens tinham sido salvos. Em vão. Procurou com as vistas
cansadas por algum sinal dos sobreviventes, mas para seu desapontamento
todos tinham fugido.
-
Nossas boas ações muitas vezes são mais turvas
que nossos pecados - comentou em voz baixa e soltou o grande machado
que jazia inerte e ensangüentado em suas mãos. Cobriu
o rosto com as mãos sujas e chorou. Era sempre assim...
Tomou
um pouco de água de seu odre. Estava deliciosamente fresca,
e ele se lembrou do riacho no qual o havia enchido e lavado seu
rosto da poeira da estrada. Esticou a mão para o cabo do
machado e, usando o mesmo como apoio, ergueu-se lentamente. Caminhou
em volta vasculhando os bolsos alheios à cata de algum trocado.
Era repugnante, mas pagaria o jantar mais tarde. Teve mais sorte
nos bolsos do homem: Três moedas de ouro, sete de prata e
aproximadamente uma dúzia de cobre... Era melhor corrigir
para "jantar da semana inteira"!
Reuniu
também todas as armas espalhadas e amarrou com uma corda.
Dariam algum dinheiro, se não como armas, ao menos como ferro
para fundir. Distraído, procurou por vestígios de
sangue em alguma delas, mas encontrou apenas uma manchada. Só
então lembrou de procurar os ferimentos em seu corpo. Estava
coberto de pequenos arranhões, mas era coisa a toa. Apenas
um deles em sua coxa esquerda exigiu um pouco mais de atenção.
Não era fundo, mas poderia infeccionar.
Andou
até a orla da mata que se erguia silenciosa e sinistra a
poucos passos da estrada e sentou-se encostado a uma árvore
para descansar os músculos. Lavou o ferimento com água
limpa de seu odre e cobriu-o com um ungüento preparado por
uma velha curandeira. Prendeu em volta da perna o último
pedaço de pano limpo que trazia em sua sacola, para tentar
proteger um pouco o corte. Uma fina garoa começou a umedecer
o ar e ele cobriu a cabeça com o capuz. Como seu tio o aconselhara,
ele sempre mantinha a face coberta, mas no calor da batalha era
impossível prestar atenção a estes detalhes.
Que destino cruel colocara a ele naquela situação
absurda! Os deuses tinham nele a sua diversão predileta!
Era apenas mais um joguete nas mãos deles...
Tão
absorto estava em seus pensamentos que percebeu quase tarde demais
que algo se movia a poucos passos atrás dele. Deu um salto
e colocou-se de pé, o grande machado girando em sua mão
direita e os sentidos despertos para a batalha. Duas manchas negras
saltaram da floresta, com espadas afiadas nas mãos e os dentes
a mostra, seguidos por um terceiro, bem maior e mais robusto. Malthus
girou o machado no ar desferiu um golpe certeiro contra o crânio
de um dos menores, que caiu com um baque surdo no chão enlameado,
sem tempo nem de gritar. O segundo guinchou horrorizado e também
não teve tempo de reagir. Sua cabeça rolou pelo chão
enquanto seu corpo se sacudia em espasmos involuntários,
ainda de pé.
-
Vou arrancar seu coração e comê-lo ainda quente,
humano - grunhiu o terceiro, arrancando do cinto uma faca e segurando
uma cimitarra com a outra mão.
- Se você
gosta de brincar com duas armas, então vamos lá -
caçoou Malthus soltando a pequena espada do cinto. Ele estava
lúcido e completamente ciente de tudo que acontecia naquele
instante.
Furiosa,
a criatura atacou com sua espada pelo flanco esquerdo de Malthus,
mas um pouco lento para a agudeza dos sentidos deste, que aparou
o golpe com sua espada e com o machado decepou-lhe o braço
direito na altura do cotovelo. O sangue voou pelo ar e a criatura
prostrou-se de joelhos perante a força de seu oponente, a
faca pendendo frouxa de sua mão esquerda. Calmamente, Malthus
atirou sua espada para o lado e puxou o capuz para trás,
olhando para a criatura com seus olhos negros e tristes.
A
face horrenda da criatura contorceu-se em uma careta de espanto,
os olhos arregalados foram da face de Malthus para a do humano morto
ali ao lado, então novamente para Malthus e por fim para
uma das criaturas mortas ao redor.A enorme mão cinzenta e
áspera da Malthus tocou seu próprio rosto, os olhos
humanos, o nariz fino, a boca carnuda com enormes caninos inferiores
a se projetar para fora. A cabeça quase sem cabelos no topo
e ao redor uma cascata rala e negra que atingia os ombros, as orelhas
pontudas e a pele cinzenta e áspera.
-
Veja o que seu povo foi capaz de criar, seu Orc imundo! - disse
Malthus em sua voz ao mesmo tempo gutural e sibilante. - Uma criatura
que causa aversão tanto nos homens quanto em vocês...
Uma
lágrima rolou pela face quase humana e causou ainda mais
espanto no orc ajoelhado na lama.
-
Minha mãe era uma humana, mas vocês acharam que as
fêmeas de sua raça não eram suficientes para
satisfazê-los - e ergueu lentamente o machado - sou piedoso
apenas porque nunca pude ver nos olhos dela o sofrimento que vocês
lhe causaram... Ela morreu para dar vida a esta abominação
que você vê diante de seus olhos.
O
machado desceu veloz e certeiro, separando a cabeça e o que
restava do braço direito do tronco do Orc.
-
Vocês criaram o seu próprio carrasco...
Antes
de partir ainda olhou mais uma vez para a expressão horrorizada
da criatura a seus pés, sorriu, e deu as costas. Enquanto
caminhava, cobriu novamente o rosto com o capuz e pegou-se pensando
se o Orc que tinha acabado de matar era seu primo, seu irmão,
ou até mesmo seu pai...
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