Tychoben
Arisaenn nasceu despretensio- samente no Ano
da Rédea (1349 CV) em uma cabana cercada por
finas paredes na zona portuária de Spandeliyon,
a então chamada “Cidade dos Piratas” na península
assoladas pelo vento de Altumbel. Seus pais
foram pessoas boas e honestas – ou ao menos
tão boas e honestas quanto qualquer um no distrito
das docas. Sua mãe, Grita, foi uma pescadora
que trabalhava nas águas do Mar das Estrelas
Cadentes, na costa de Altumbel, assim como seu
pai; nas docas, rumores afirmavam que Jaffen
Arisaenn já havia velejado a bordo de um navio
pirata antes mesmo de velejar em um bote pesqueiro.
Mas isso não importa – metade dos habitantes
das docas, e um bom número no centro da cidade,
poderiam clamar o mesmo.
A infância de Tycho
foi típica de um rato de doca em Spandeliyon.
Seu berço foi um caixote forrado com um manto
de peles de raposa sarnenta, que uma vez ornou
os ombros de uma matrona da cidade alta. Tycho
meteu-se em problemas assim que começou a andar
e rapidamente progrediu para dormir sob cobertores
roubados e roubar vegetais e pequenos bens de
barracas do mercado. Outras atividades incluíram
molestar bêbados e esquivar-se dos serviços
religiosos que seus pais tentavam instilar-lhe.
Ele adquiriu reputação por ter pés rápidos,
dedos lépidos e língua ainda mais rápida. Mesmo
à tenra idade, Tycho descobriu que podia falar
por si mesmo em uma situação tensa; e descobriu
ainda uma doce voz e um talento para cantar,
ainda que isso tivesse pouca serventia para
uma criança despreocupada.
Sua vida mudou no
Ano das Sombras – durante o Tempo das Perturbações.
Diferentemente de tantos em Faerûn, que sofreram
durante este tempo negro, a tragédia de Tycho
foi de natureza puramente mundana. Uma violenta
tempestade emborcou o barco de sua mãe e lançou
Grita nos braços de Umberlee. Jaffen, seu pai,
sobreviveu ao acidente e voltou à praia, mas
foi transformado pela experiência. Uma inquietação
cresceu dentro dele, e mesmo quando amigos tinham
piedade do homem e o contratavam para seus botes,
ele freqüentemente passava mais tempo observando
o horizonte de águas do que as redes de pesca.
Findo um inverno severo, seus olhos fixaram-se
no mar, e na primavera ele deixou Spandeliyon,
confiando a Tycho, então com nove anos, aos
cuidados de amigos. Rumores correram nas docas
afirmando que ele havia retornado à vida de
pirataria que havia abandonado anos antes.
Tycho percebeu que
a fase tranqüila de sua existência chegara ao
fim. Seus pais adotivos eram peixeiros, e enquanto
um bote pesqueiro podia não ser lugar para uma
criança, o mesmo não podia ser dito de uma carroça
de peixeiro. Ajudar seus pais adotivos foi sua
libertação, e Tycho teve sua primeira introdução
civilizada à gente melhor do centro da cidade
e da cidade alta de Spandeliyon. Uma língua
eloqüente e um talento especial de se adaptar
às maneiras encantou cozinheiros, criadas e
mordomos; e Tycho pôde fazer de si mesmo um
ótimo peixeiro. Seu primeiro amor, contudo,
corria livre pelas ruas das docas e, para frustração
de seus pais adotivos, ele estava longe de seus
deveres tão freqüentemente quanto os cumpria.
Jaffen retornou
tardiamente a Spandeliyon no Ano do Torreão
(1360 CV), ainda que seu braço direito não –
fora perdido abaixo do cotovelo. Jaffen não
falava sobre isso. Ele trazia, contudo, uma
grande quantidade de moedas de prata. Os pais
adotivos de Tycho ficaram bastante felizes em
devolvê-lo aos cuidados de Jaffen, e Tycho ficou
feliz em deixá-los, contente por estar livre
de seu trabalho rigoroso e de estar novamente
com seu pai. Contudo, um braço não era tudo
que Jaffen havia perdido. A inquietação que
o havia arrastado de Spandeliyon foi substituída
por um sombrio silêncio e as moedas que ele
havia trazido consigo desapareceram rapidamente
nas mãos dos taverneiros. Uma noite, no começo
do Ano da Donzela, Jaffen caminhou para dentro
do mar. Seu corpo foi levado à praia na manhã
seguinte, azulado pelo frio.
A prata havia-se
ido e Tycho era um órfão. Ele tentou voltar
para seus pais adotivos, mas a caridade e boa
vontade deles eram limitadas e eles o rejeitaram.
As duas tradições de Spandeliyon – a pesca e
a pirataria – permaneciam abertas para ele,
mas a primeira havia clamado sua mãe e a segunda,
seu pai. Tycho sabia que não queria nenhuma
delas. Determinado a não seguir seus pais para
um túmulo úmido, ele voltou-se para seus próprios
talentos, criando seu caminho por meio de pequenos
roubos, pequenas trapaças e a compreensão que
sua doce voz possuía um uso: pessoas pagariam
por uma canção. Tycho começou cantando canções
de marinheiros em tavernas nas docas e baladas
em esquinas do centro da cidade. Isso lhe trouxe
algumas peças de cobre, o que foi suficiente
para mantê-lo vivo durante a maior parte de
dois anos.
No verão do Ano
do Dragão (1363 CV), a vida de Tycho mudou novamente.
Ele estava de pé uma noite no canto do Mercado
da Glória no centro da cidade, cantando pela
atenção daqueles que vagavam pelas ruas e estava
obtendo sucesso em atrair moedas como resultado,
quando um grupo de comerciantes e suas famílias
passaram tagarelando em voz alta. Pelo tempo
que eles estiveram passando, roubaram a atenção
voltada a Tycho. Insultado, Tycho cantou alto,
acima da conversa dos mercadores, esperando
afastá-los. Para sua surpresa, um estranho entre
eles, uma velha mulher, de fora de Spandeliyon
a se julgar por seus trajes, parou, olhou para
ele, e cantou em resposta. Pensando que ela
o estava zombando, Tycho a imitou, nota por
nota até que os homens da comerciante o afastaram.
Não obstante, dois
dias depois, Tycho ouviu novamente a canção
da velha mulher, dessa vez nas docas, e dessa
vez dirigida para ele. Irritado, ele cantou
uma vez mais. Sem guardas para pará-lo, o duelo
de canção se prolongou, atraindo uma multidão
para ver e ouvir, até que a velha mulher derrotou
Tycho com uma sublime melodia que foi a mais
bela coisa que ele já havia ouvido. A multidão
explodiu em aplausos, e, para surpresa de Tycho,
peças de cobre choveram na rua, vindas daqueles
que os ouviam.
Quando a multidão
se dispersou e o cobre havia sido recolhido,
a velha mulher se apresentou. Seu nome era Veseene,
também chamada Veseene, a Cotovia. Tycho estava
atordoado. Mesmo na zona portuária de Spandeliyon
ele havia ouvido sobre a Cotovia, uma das mais
renomadas bardas de todo o Mar das Estrelas
Cadentes. Veseene havia viajado a Spandeliyon
para cantar para os ricos e poderosos de Altumbel,
mas durante a semana seguinte ela visitou a
zona portuária numerosas vezes. Enquanto ouvia
Tycho e lhe ensinava novas canções, suas maneiras
e comportamento mostravam que ela estava muito
mais em casa entre as tavernas rústicas do que
no centro da cidade.
Ao fim da semana
Veseene pediu que Tycho deixasse Spandeliyon
com ela e se tornasse seu aprendiz. Ele aceitou
imediatamente.
Por sete anos Tycho
viajou com Veseene para o oeste, leste, norte
e sul – sempre em torno do Mar das Estrelas
Cadentes – e aprendeu sua música e sua magia.
Seu aprendizado foi jubiloso, porque ainda que
Veseene fosse idosa, ela era também tenaz, confiante
e, acima de tudo, uma artista mestra. Ao seu
lado Tycho cantou e tocou – com o tradicional
instrumento Altumbelniano, chamado strilling
– por todos os lugares; de cabanas de pescadores
até tavernas de marinheiros e mansões de nobres.
Velha mestra e impetuoso aprendiz moviam-se
facilmente entre todos os níveis da sociedade,
e a chave de ouro que abriria qualquer porta
e limpava o caminho era sua canção.
Até que a voz de
Veseene lhe faltou.
Uma paralisia afligiu
Veseene por muitos anos, lentamente piorando
com o tempo e deixando tremulas suas mãos e
membros. Nenhuma mágica pôde trazer alivio para
ela, e no Ano da Manopla (1369 CV), a paralisia
tomou também sua voz. A canção da Cotovia vacilou
e Veseene ficou muito enferma para a vida viajante
de um bardo. Tendo sobrevivido a muitos de seus
amigos, Veseene encontrou frieza e pouca caridade.
Tycho não pôde abandonar sua mentora e amiga.
Mais tarde naquele ano, eles voltaram a um lugar
que Tycho conhecia melhor que qualquer outro,
e onde poderiam viver das escassas economias
de Veseene e sua música: a zona portuária de
Spandeliyon.
Mesmo em Spandeliyon,
entretanto, o ouro durou pouco e a prata não
muito mais, e até mesmo a auto-confiança de
um bardo não pode tirar o frio do ar. Era o
mês de Martelo do Ano dos Dragões Ladinos (1373
CV), e o ano caminhava para um frio começo…
Discubra mais sobre
Tycho no romance The
Yellow Silk [A Seda Amarela],
por Don Bassingthwaite.

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